Sobreviver

60 11 3
                                    

 Ainda perdida entre aquele abraço e minha profunda tristeza, meu corpo absorvia todo o calor que emanava do seu. Afastei-me aos poucos, e ele me olhou com aquele olhar doce e gentil. Era difícil acreditar que Mattew tinha sido um monstro igual a eles. Suas mãos sobre o meu rosto fizeram tudo ficar mais intenso. Ele me deu um beijo na testa e ajeitou-se na cama, pegando a tigela, e começou a comer enquanto olhava para o guarda-roupa à sua frente.

Eu não estava com fome, e a última coisa que queria era comer algo. No entanto, peguei de volta a tigela que havia colocado no chão e comecei a refeição de maneira vagarosa, absorvendo cada tempero e pedacinhos de carne naquele caldo encorpado. O sabor descia pela minha garganta, trazendo uma pitada sutil de canela.

Comemos ouvindo apenas o som da chuva contra o telhado e a dança das árvores sob o vento, uma melodia perfeita para aquele cenário que afligia meu coração. Mesmo sem perceber ou fazer algum tipo de esforço, as lágrimas rolavam sobre meu rosto opaco e desacreditado em tudo ao meu redor.

Percebi que ele havia terminado de comer e, olhando para mim de maneira fixa, me levou a falar:

— Preciso comer tudo? —  erguendo as sobrancelhas e entortando um pouco a boca.

— Claro que não. Achei que você comeu muito bem para quem não estava nem com fome. Por favor, dê-me seu prato — um sorriso gentil surgiu em seus lábios. Saindo em seguida do quarto.

Levantei-me e fui direto para a janela, observando a chuva que parecia cair por todo o mundo. Ao fundo, ouvia o senhor Harris fechar as portas principais. Seus passos pesados ​​logo estavam subindo pela escada. Ele entrou e trancou a porta, e eu senti sua presença atrás de mim. Virei-me rapidamente, e seus olhos amendoados e gentis ficaram fixos na chuva.

— Como... — comecei, hesitante. — Como você se envolveu com aquelas pessoas?

Ele suspirou profundamente, seus ombros caíram um pouco sob o peso da pergunta. Aproximou-se e ficou ao meu lado, também olhando para a chuva.

— Sabe, Bianca — a voz melancólica que deixava seus lábios chegava ao meu coração — em nenhum momento da vida cheguei a cogitar que enfrentaria eles. Por conta disso, vamos mudar daqui a duas semanas. É o tempo que levarei para conseguir um lugar seguro para nós e para o Dennis — suspirou, fechando os olhos.

— Ele não vai com a gente? —  sentia um aperto no peito.

— Não, enquanto o Dennis estiver por perto, sempre vou me conter, pois nunca quis que ele soubesse quem eu sou, ou quem fui.

— E quem você foi, Mattew?

Ele nunca ouviu minha boca pronunciar seu primeiro nome, o que o levou a preencher seu rosto com um leve sorriso envergonhado.

— Finalmente disse meu nome. Mas respondendo à sua pergunta, fui um ninguém toda a minha vida, até ser acolhido pelo pai de Leonid quando tinha uns nove anos. Trabalhei para ele até conhecer minha esposa. Pedi para sair da organização, e o velho aceitou com a condição de que, se ele precisasse, eu nunca poderia dizer não. Na época, eu estava com vinte e cinco anos. Um dos gerentes apareceu aqui dizendo que eu precisaria ir para a Itália. Naquele período, nós tínhamos acabado de perder nosso filho para uma condição rara em seu pequeno e frágil coração. Desde o nascimento, os médicos diziam que ele não passava de um ano, e realmente não passou.

Mattew fez uma pausa, sua expressão tornava-se sombria.

— Fui infeliz em dizer não. Minha esposa estava frágil, debilitada, nem da cama saía. O homem foi embora e retornou dois dias depois, junto com o pai de Leonid e seus serviçais. Tentei lutar, mas não consegui fazer nada, apenas observei enquanto eles cortavam a garganta dela sobre a neve acumulada no chão, que rapidamente ficou vermelho vivo. Na mesma hora, o senhor Davis disse em alto bom tom, enquanto eu abraçava o corpo da minha mulher sem vida, que eu teria exatamente duas horas para enterrá-la e encontrá-los na plataforma do trem. Naquele ano, enterrei meu filho, meu sogro e minha esposa.

Amor e DorOnde histórias criam vida. Descubra agora