𝙄𝙄

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    Foi-se a primeira metade da estação gélida e inanimada, junto com uma boa quantidade de suprimentos e de calor conservado por um mês e meio, e o garoto de madeixas cor de framboesa precisava sair do próprio casebre e coletar comida se quisesse continuar vivo até atingir a idade adulta minimamente saudável, então sabendo disso abriu a porta improvisada para se deparar com uma cobertura de neve fina sobre o chão que outrora fora grama e flores, e mesmo que estivesse um frio fúnebre e assustadoramente vazio era impossível negar a beleza excêntrica que o espaço reservava, mas infelizmente não poderia passar muito tempo admirando a harmonia branca que se seguia até o fim do país porque realmente precisava se alimentar e rápido, ou... Bom, morreria de frio. O ruivo saiu para uma distância cada vez maior em direção ao sol invernal, observando com alegria cada pedacinho da estrada que o abraçava como uma mãe abraçava seu filho, claro que o garoto não tinha uma mãe, entretanto ser abraçado pela neve e pela brisa calma com pinheiros em volta de si, era uma recompensa, ser encoberto pela alvorada... Como adorava alvoradas... Elas eram lindas Em seus tons de laranja, azul e vermelho até no inverno, o sol nunca decepcionava (exceto quando nesse exato momento estou sendo assado escrevendo em derretimento), tudo o que faltava era uma grande catedral e uma companhia para dividir a beleza que o coração carregava.
    Ele caminhara bastante até chegar no vilarejo de 𝙎𝙣𝙤𝙬𝙛𝙖𝙡𝙡, que era a civilização mais próxima de sua cabaninha e da floresta, e passara um bom tempo caçando moedinhas e trocando garrafas de cerveja achadas em arbustos com proletariados cansados de trabalhar o dia inteiro, conversara também com missionários e ministros presbiterianos para ver se conseguia mais um pouco de dinheiro, até que chegou em uma mansão burguesa de tamanho colossal, e já ia subindo as escadas e batendo na porta quando ela se abriu e algo muito pesado caiu em cima dele e depois passou varado degraus abaixo, com uma mulher muito bem vestida, exceto por uma mancha de vinho em seu vestido de linho branco, que estava gritando a plenos pulmões coisas como "OLHA O QUE VOCÊ FEZ COM MEU VESTIDO SEU INÚTIL, FILHO DO DIABO! DEVERIA DESCER AO INFERNO AGORA MESMO SEU INFELIZ" enquanto a imagem que havia quase o desequilibrado era a de uma criança que parecia ter a sua idade, da qual chorava copiosamente toda jogada no pé da escadaria enquanto gritava e implorava por desculpas, e que aquilo havia sido somente um acidente e que não iria se repetir, entretanto a mulher acabou com todas as suas tentativas de perdão dizendo que o garotinho só fazia atrapalhar todo mundo e que ninguém o aguentava mais, e que na casa dela ele não entrava nem pintado de cobre, logo após usar seu veneno de cobra em sangue inocente fechou a porta na cara do ruivo aterrorizado e do outro garoto que estava completamente desolado, pois acabara de perder o único lugar que podia chamar de lar. O garoto não estava nem um pouco feliz com a situação do outro menino, e sem nem perceber se encheu de empatia, e ele compreendeu que devia ajudar o amiguinho quando este passava por necessidades.
    O ruivo acabou por descer as escadas e se preparou para erguer o jovem que estava todo maltratado na neve, e em questão de minutos já estava carregando (mesmo que de maneira bem desengonçada) o menininho de cabelo castanho e já estava caminhando em direção à feira para comprar alimentos para duas pessoas e um animal, antes que se formasse uma nevasca e eles tivessem de dormir no vilarejo. Passou-se um tempo e os meninos chegaram ao atual lar de um e o novo? De outro? Talvez não, o ruivo sabia que nem todo mundo conseguia se adaptar a morar em uma cabana na floresta, e se o parceiro quisesse ir embora e tentar ser serviçal em outro lugar, ninguém teria direito de impedi-lo, ambos entraram, com o mais velho tomando todo o cuidado possível para não lesionar mais do que já estava até mesmo enquanto o deitava na própria cama, logo depois de deixar o garoto abatido deitado sobre a colcha, o ruivo se aproximou dos tapetes roubados; recortou um pedaço pequeno de um macio que estava mais em cima; pegou alguns palitinhos de restos de gravetos e lascas de árvores; juntou tudo como uma gaze caseira; mergulhou em uma mistura de cavalinha, se abeirou do garotinho e com muito cuidado posicionou o gesso improvisado na perna ferida dele, causando uma irritação que fora o suficiente para causar medo no juvenil, que se desviara para longe do outro garoto num ato reativo de defensiva, no entanto, estava com uma dor angustiante demais para ir longe, então pegou uma confiança mínima quando percebeu que o outro só estava tentando ajudá-lo e o ajudou a terminar a colocar a atadura em sua perna, e ambos conversaram bastante enquanto faziam o trabalho.
    Alguns dias se passaram e os dois garotos já tinham uma intimidade inicial que parecia ter sido construída por anos a fio, era muito engraçado como o destino havia unido duas pessoas muito parecidas com distâncias e realidades bem distintas, os dois contavam histórias que haviam acontecido com eles enquanto comiam um bolo de milho comprado na feira algumas horas antes do momento atual, o guaxinim parecia ter gostado do garotinho de olhos magentas como se ele fosse o dono do animal desde o momento de seu nascimento, e o garoto ruivo adorou finalmente ter um amigo que fosse fã de aventuras como ele, era uma sensação ótima não estar mais sozinho no mundo e ter alguém que soubesse fazer roupas e armas (e que não tivesse problema nenhum em morar na floresta). Entretanto, a única coisa que o incomodava era o fato de que o mais novo o tratava como um amo, e a diferença entre amo e amigo não era sutil... Mas nada que um tempo de independência não curasse a alma submissa que fora construída por 11 anos.

𝘼 𝙫𝙚𝙧𝙙𝙖𝙙𝙚𝙞𝙧𝙖 𝙧𝙚𝙘𝙤𝙢𝙥𝙚𝙣𝙨𝙖-𝑳𝒂𝒑𝒖𝒉Onde histórias criam vida. Descubra agora