16. Helena

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A comida estava fria, um reflexo da atmosfera gélida que pairava sobre a mesa. Duas horas. Duas horas encarando aquele prato, mas não era o frango assado que me prendia ali. Era o meu pai, sentado em frente a mim, um estranho em seu próprio corpo. Ele parecia tão distante, tão perdido em seus pensamentos, que eu quase podia sentir o abismo que o separava de mim.

A sensação de apreensão me corroía por dentro. Minha mãe, com os olhos úmidos, parecia tão frágil, tão vulnerável, que eu temi quebrar em mil pedaços com um simples toque. O que estava acontecendo? Por que todos estavam tão diferentes?

Eu me lembrei do abraço caloroso que recebi ao chegar. Era como se a distância de três anos tivesse se esvaído, como se eles estivessem me esperando de braços abertos. Mas agora, essa sensação de acolhimento se transformava em um nó na garganta, uma sensação de que algo estava terrivelmente errado.

— Você é uma ótima esposa, Wilter está muito bem, nota-se que você amadureceu nesses três anos... — meu pai disse, a voz rouca de emoção.

— O que está acontecendo? — perguntei, a voz alta e tensa, rompendo o silêncio carregado.

— Helena, o que é isso? — minha mãe me repreendeu, os olhos arregalados.

— Mãe, pare de fingir que nada está acontecendo. Você sabe muito bem que ele não é assim, ele nunca foi assim! — exclamei, meu olhar fixo no meu pai, que parecia ter envelhecido dez anos em uma semana.

— Tanto rancor, Helena. Seu pai não pode ser carinhoso com você? — minha mãe retrucou, a voz carregada de um tom acusatório.

Minha risada ecoou pela sala, um som estranho e vazio. Cocei as sobrancelhas, tentando encontrar uma resposta. Eu não era rancorosa, mas meu pai... meu pai era um trauma. Cada vez que eu me aproximava dele, me lembrava do inferno que vivi durante vinte e cinco anos.

— Ela precisa saber... — meu pai sussurrou, a voz quase inaudível.

Meu olhar se fixou no seu, e nossos olhos se encontraram como se estivessem travando uma batalha silenciosa. Minha mãe, com os lábios trêmulos, parecia estar lutando para conter as lágrimas.

— Filha... — meu pai começou, a voz falha. — Sua mãe e eu, fomos diagnosticados com câncer.

A frase caiu sobre mim como uma bomba. O mundo ao meu redor se desfez, as cores se esvaíram, e o ar se tornou rarefeito. O frango frio, a mesa, a casa, tudo se tornou um cenário de um pesadelo. A ironia me atingiu como um soco no estômago. As pessoas que me infernizaram a vida, que me fizeram sentir tão pequena, tão insignificante, estavam morrendo. E eu? O que eu deveria sentir? Felicidade? Uma sensação de justiça poética?  A verdade era que a raiva que carreguei por anos se esvaía, deixando um vazio gélido em seu lugar.

— Deus nos castigou, filha. Isto é a prova que tudo tarda, mas nunca falha. — minha mãe disse, a voz carregada de culpa e arrependimento.

— O que pensávamos que era um ensinamento, era um pecado, minha filha. Nós fomos condenados, culpa das nossas falhas. — meu pai completou.

Ele limpou as lágrimas que insistiam em rolar pelo seu rosto enrugado. Novamente, a pergunta me assolava: O que eu deveria sentir?

— Nos perdoa, Helena... me perdoa filha, me perdoa... tens razão, não mereces ser como eu, não precisas ser como nós. Tens um ótimo lar, e um ótimo marido, tudo graças a ti. Me perdoa... eu pequei.  — meu pai implorou, a voz trêmula.

Minha mãe se juntou a ele, limpando as lágrimas que escorriam pelo seu rosto.

— Quem me dera que Deus abrisse nossos olhos mais cedo, assim não estaríamos a sofrer tanto. — meu pai suspirou.

O que eu sentia não era compatível com o que eu pensei durante anos. Era como se uma parte de mim, a parte que guardava a dor e a raiva, estivesse se desprendendo. E no lugar dela, um sentimento estranho, uma mistura de compaixão e confusão, começava a tomar conta.

Eles estavam morrendo. E eu, eu estava ali, diante deles, com a oportunidade de perdoar, de dizer que estava tudo bem, que não guardava rancor. Mas as palavras não saíam. Era como se o peso de tudo o que eu vivi, de tudo o que eles me fizeram, estivesse me impedindo de falar.

Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia o que sentir. A única certeza que eu tinha era que a vida, como um rio turbulento, nos leva para lugares inesperados, nos coloca diante de situações que desafiam nossas crenças e nos forçam a questionar tudo o que pensamos saber.






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