Sandra enfiou-se no chuveiro quente, e a sensação da água caindo em seu corpo foi reconfortante. Seus pensamentos voltaram-se para a amiga. Nely parecia tensa, ficava ainda mais tensa em dias chuvosos e frios.Não gostava de vê-la assim, considerava-a sua irmã e não gostava de ver sua família sofrer. E ela sabia que Nely sofria com as lembranças que povoavam sua mente, as lembranças do terror que ela vivera.
Uma coisa assim não se esquecia da noite para o dia. Era algo que marcava toda uma existência, ela pensava.
Vinha acompanhando Nely na terapia, ela tomava seus remédios, mas Sandra escutava quando a amiga acordava aos berros de um pesadelo. Queria ajudá-la, mas não sabia como, sentia-se impotente, e aquilo também a deixava triste, sentindo-se um lixo, vendo o sofrimento da amiga e incapaz de amenizá-lo.
Mas ela tentava. Seus outros amigos, dentre os quais Nicolas, também ajudavam, tentavam fazer em volta dela um escudo de amor, carinho e compreensão. E isso ajudava, não resolvia, mas ajudava.
O que aconteceu afetava não só Nely, mas a si própria. Afinal, ela era uma das quatro amigas, fazia parte do grupo de garotas que, em 1979, sentara-se em roda em uma cachoeira e firmara um pacto de amizade eterna.
(Amigas para sempre. Amigas até morrer.)
Ela se lembrava de Angélica, aquela garota franzina que conhecera no colégio em 1974. Lembrava-se de que a pequena Angélica era vítima de bullying e de como Nely ficara indignada ao ver a maneira como Maurício, aquele garoto feio e gordo, espatifara o sanduíche de presunto que ela comia.
– Que filho da puta! Temos que fazer alguma coisa! – Nely dissera.
E elas fizeram. Érika esmagou o saco de Maurício, que na época devia ser completamente desprovido de qualquer pelo pubiano, com um chute, e elas começaram uma amizade, uma amizade que parecia ser pura e sincera. Não, não apenas parecia, fora de fato pura e sincera durante muitos anos. E então aquela tragédia acontecera. Angélica revelara seu verdadeiro caráter, Nely a matara, e o pesadelo começou.
Uma tragédia que a afetava de forma direta. Ela não estivera lá, mas era como se estivesse.
Érika acabou morrendo também. Érika, que era a mais velha e cuidava das outras como se fosse uma mãe.
Sandra sentiu vontade de chorar, mas se começasse, ia perder o controle e não conseguir mais parar.
Às vezes pegava Nely chorando e a deixava assim, talvez chorar fizesse bem a ela. Era preciso colocar todas as mágoas para fora.
Sandra desligou o chuveiro e foi ao closet, onde se enxugou e trocou de roupa.
Quem sabe chorar fosse a solução.
Nely vivia enclausurada dentro de casa. Arranjara um emprego de consultora, onde passava o dia na frente do computador. Sandra entendia as razões da amiga: Coder. A polícia, que na opinião de Sandra era incompetente, ainda não o prendera. Mas ela sabia que aquilo não era bom. Nely precisava sair, não apenas ir até a padaria e voltar, precisava respirar um ar puro, espairecer um pouco e tentar se livrar dos fantasmas de seu passado.
Sandra falara disso com Nicolas, e ele prometera que daria um jeito, queria ajudar assim como todos.
Ela pensou em Nicolas.
Um homem extraordinário, do tipo que chamaria a atenção da mais indiferente das mulheres.
Não sabia se estava apaixonada (talvez não), mas sentia uma mescla de sentimentos sempre que pensava em Nicolas. A maneira como ele sorria, mostrando dentes brancos e perfeitos, o brilho cativante de seus olhos, o contorno de seu corpo bem torneado. Eram coisas que a deixavam louca de desejo, e desejo era apenas um daqueles sentimentos.
Ela se reprimia por isso, mas não podia evitar. Nicolas era o homem que ela sempre sonhara em ter, e aquilo era fato.
Mas talvez aquilo estivesse distante, fosse um sonho desvairado. Nicolas a via apenas como uma amiga e nada mais. Ele se preocupava com elas, principalmente com Nely. Ele conhecia a sua história, tudo o que ela tinha enfrentado, e queria ajudar.
Apenas um amigo.
Será?
Ao menos era o que ela achava que ele sentia em relação a ela. Em relação a Nely, ela tinha suas dúvidas.
Nicolas parecia estar extremamente interessado. Ela achava que ele gostava de Nely, queria ser mais do que simplesmente um amigo.
Por outro lado, Nely parecia estar completamente fechada, era totalmente indiferente ao interesse de Nicolas (um homem muito bonito). Ela parecia não estar nem um pouco interessada em um relacionamento àquela altura de sua vida, um relacionamento em que corria o risco de se magoar de novo.
Isso dava uma certa esperança a Sandra. Sua irmã não estava no caminho (se estivesse, ela pularia fora). Ela estava totalmente livre.
Sandra suspirou. Não custava nada sonhar.
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Eu ainda sei onde você está
TerrorDois anos após os terríveis acontecimentos que moldaram sua vida para sempre, Nely vive com sua amiga Sandra, ainda assombrada pelos fantasmas do passado que povoam e corroem sua mente. Ela e alguns amigos estão prestes a fazer uma viagem a uma faz...