Capítulo 19

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Nem Clarice Lispector tem uma frase de efeito para justificar as raízes obscuras da safadeza

Tudo se tornou uma profusão de cores, de modo que parecia estar dentro de um arco-íris. Um cenário surrealista que mexia com todos os meus sentidos permaneceu diante de mim; as plantas, os vasos, as flores, a água da mangueira que jorrava na piscina. A imagem ela  usando uma sunga vermelha e um top. Seu corpo dourando sobre uma toalha grande azul-escura, forrada em cima da grama verdinha.

Depois de três caipirinhas, muitas risadas e fatias de carne tão macias quanto a boca daquela mulher, achei que estivesse no paraíso. A sensação de alegria fez com que me sentisse culpada: não devia estar alegre. A minha avó continuava no hospital, lutando pela própria vida. Entretanto, sentia que eu estava lutando pela minha. O que, claro, não fazia muito sentido.

Ela preparou uma farofa que, meu Deus, estava uma coisa de louco. Colocou tantos ingredientes dentro dela que podia alimentar uma manada de elefantes (ou seja, eu). Nunca pensei que uma farofa pudesse ser tão perfeita. Enquanto a observava se bronzear, sentada à mesa, só pensava em comer, comer e comer, em todos os sentidos da palavra (se é que me entende!).

Havia colocado o meu biquíni (e pegado o meu celular caso alguém me ligasse com notícias da vovó), mas até então não havia tido coragem de sair de perto da mesa. Devorava qualquer pedaço de carne que Ela vez ou outra colocava em uma travessa de vidro. Ela parecia saber exatamente qual era o momento de tirá-las da churrasqueira, como se um relógio interno a alertasse. Devia ser prática mesmo.

Não tocamos mais nos assuntos delicados. Para ser bem sincera, tentei arrancar mais informações dela, sem sucesso. Ela se manteve relativamente distante. Beijou-me muito pouco, menos do que eu gostaria. Seu distanciamento me entristecia, pois me fazia recordar o tempo todo o tipo de relação que tínhamos.

Alguma coisa entre nós estava faltando. O vazio de nossas conversas se tornou evidente, e acreditei que tenha sido por isso que ela resolveu se afastar para absorver o sol forte daquela tarde. Dava qualquer coisa para saber o que se passava naquela cabecinha oca. Reparei seu olhar perdido nos vasos que jaziam no lado oposto, e uma carranca se fez presente antes que eu tivesse coragem de fazer qualquer pergunta.

O desânimo me atingiu depois que percebi a travessa vazia. Eu tinha comido pelo menos uns setenta por cento das carnes que ela preparou. Droga! Ia engordar muito convivendo com aquela mulher perfeita na cozinha (e no quarto também, diga-se de passagem).

Terminei a minha caipirinha e suspirei. O som portátil ainda trabalhava, ajudando-me a suportar o silêncio. Olhei para mesa no intuito de encontrar mais alguma coisa que pudesse ser devorada.

Ainda tinha muita farofa, e alguns tomates fatiados com uma uniformidade impressionante. Só ela para conseguir uma proeza daquelas.

Nenhum sinal de fatias de carne. As que estavam na churrasqueira aparentemente não estavam prontas, já que o relógio interno dela não tinha apitado até então.

Levantei-me e me espreguicei. Ela finalmente olhou na minha direção, sorrindo sacanamente logo em seguida. Parei um pouco só para acompanhar as suas reações, e acho que me demorei demais.

Nossos olhares permaneceram cruzados até que ela resolveu se levantar e caminhar até mim, exibindo aquele corpo que merecia o prêmio Nobel da sensualidade.

Parou na minha frente e me deu um selinho casto. Eu estava sedenta por mais, só que não tive. Ela deu um gole na própria caipirinha e procurou por alguma coisa na mesa. Fez uma careta e me olhou, sorrindo.

– Sim, eu comi tudo – falei de uma vez. – Acho que é a ansiedade. Ou então o seu talento de fazer qualquer comida virar manjar dos deuses.

Ela gargalhou alto.

A safada Mora ao LadoOnde histórias criam vida. Descubra agora