A sala estava imersa na mais profunda e silenciosa escuridão. Havia apenas um foco de luz sobre um caixão reluzente, aberto. Eu me mantinha longe dele por puro medo de conferir quem poderia encontrar ali. Sombras murmuravam ao redor da sala, em gemidos de dor e lástima. Uma guirlanda de rosas adornava o canto superior do ambiente, mas não bastava para tornar o clima menos sombrio.
Senti que mãos invisíveis me empurravam, obrigando-me a chegar mais perto. As sombras disformes ainda sussurravam coisas ininteligíveis, apontando-me o dedo como se me julgassem. Além da tristeza, eu sentia a culpa. Poderia pegá-la em minhas mãos de tão real, absoluta.
Mais um passo inquietante na direção do caixão. O que encontraria ali? Minha mãe? Meu pai? Vanessa? Todos os velórios me pareciam iguais. Não pude identificar nada que o diferenciasse, nenhuma pista que me fizesse ter certeza de quem tinha seu corpo velado pelas sombras.
O ar estava suspenso. Eu não respirava, não conseguia. Conforme me aproximava, a cortina de rosas brancas que cobria o defunto se desintegrava, até que revelou o rosto angelical de Mon. Ela parecia dormir profundamente, mas não...
Estava morta.Acordei abafando um grito apavorada. Olhei para um lado e para o outro, constatando que estava no meu quarto, na minha cama. Era um pouco tarde, sinal de que a vizinha já deveria ter ido trabalhar, então se cheguei a gritar por causa daquele pesadelo terrível, ela não ouviu. O meu celular estava tocando de maneira insistente. Pensei que fosse o despertador, mas não, era uma ligação de um número que não estava salvo na agenda.
— Alô? — Resolvi atender. Ainda estava assustada, muito perturbada por ter sonhado com a morte da minha vizinha.
— Oi, querida... Você não vem a academia hoje? Eu deveria ter reconhecido aquela voz, mas não fui capaz.
— Quem fala?
— Como assim, quem fala? Sou eu, Rita! — Por um instante, aquele nome não significou absolutamente nada para mim. Depois de alguns segundos foi que entendi que era a loira da academia, que por acaso eu estava pegando. — Queria tanto falar com você. Desde a semana passada que tento...
— Não é uma boa hora, Rita — eu a cortei de imediato. Ainda estava meio tonta e nem um pouco a fim de falar com ninguém. Embora maravilhosa, a noite passada havia deixado um gosto amargo no meu paladar.
Seria difícil tragar o fim.
— Aconteceu alguma coisa? — a mulher perguntou, parecendo realmente preocupada. Seria muito louco se eu contasse a ela o que se passava comigo.
— Nada, só estou com algumas preocupações. Até mais, eu te ligo. Mas era claro que eu não ligaria. Sinceramente, sequer me lembrava da Rita quando todos os meus pensamentos eram direcionados para a mulher que morava ao lado. Entender aquilo não me fez nada bem, e somado ao pesadelo, minha situação só piorava. Aquele era um sinal claro de que eu deveria, sim, manter-me longe de Mon, pelo bem dela.
Trabalhei me sentindo um verdadeiro pedaço de lixo. Não conseguia tirar a noite anterior da memória. Mon ainda estava sobre a minha pele, causando-me arrepios constantes, e eu tinha certeza de que podia sentir seu cheiro. Nossa última conversa foi, de fato, a mais dolorosa. Dizer não quando eu queria ter dito sim acabou comigo.
Eu não a vi durante toda a segunda-feira, e na terça pela manhã Mon saiu cedo de novo. Parecia que estava me evitando, o que era apropriado e eu deveria fazer o mesmo, pelo menos até esquecê-la. Contudo, fui a feira logo cedo e voltei carregado de plantas, inclusive um cacto para enfeitar o seu jardim. Não resisti ao escrever um novo bilhete e deixá-lo embaixo do novo vaso:
"O cacto é cheio de raiva, com dedos todos retorcidos, e é impossível acarinhá-lo: ele todo te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne". (Tia Clarice)
Saudade, C. Se Mon prestasse um pouco mais de atenção, entenderia que aquele cacto era uma representação fiel de mim mesmo. Talvez eu estivesse me justificando ao deixar aquela frase ali, ou pedindo desculpas por ser esse ser que machuca como se fosse de sua própria natureza – porque eu sabia que a vizinha estava machucada. Mas procurei não passar tanto tempo pensando nisso.
Depois de um dia exaustivo de trabalho, cheguei a casa e encontrei as luzes do jardim acesas, porém sem nenhuma movimentação no 104. A vizinha já tinha ido dormir. Pudera, era bem tarde, passava das duas da manhã.
Ao abrir a porta do 105, algo me chamou a atenção sobre o tapete da varanda: uma foto linda da Mon Presa a ela havia um bilhete com a seguinte mensagem:
"Resolvi não falar hoje em saudade nem dar a entender 'saudade' por carinhos... Senão me derramaria demais e perderia o equilíbrio que é tão necessário pelo menos para se dormir de noite". (Santa Lispector) Lembre-se de que saudade é um sentimento urgente... M.
Tive vontade de bater em sua porta, mas não quis acordá-la. Além do mais, o que diria? O que faria? Nossa resolução de sermos amigas precisava continuar, mesmo que a saudade nos queimasse por dentro. O pesadelo que tive não me deixava esquecer que precisava preservar o bem-estar daquela mulher.
Passei muito tempo analisando o retrato do sorriso lindo da Mon. Guardei-o com o maior carinho dentro de um livro. Era certeza de que o consultaria sempre; admirá-la se tornava algo cada vez mais inevitável para mim. Bem que tentei acordar cedo para vê-la passando pelo jardim, mas como estava cansada e dormi mais tarde do que pretendia, não conseguir estar de pé a tempo.
Infelizmente.
Eu já estava enlouquecendo de tanta falta que sentia dela. Ignorava todas as ligações de mulheres a fim de sexo, inclusive da insistente Rita. Sabia que em algum momento eu devia parar com aquela palhaçada e voltar ao meu normal, porém não me sentia nem um pouco pronto. Talvez eu precisasse de tempo para me acostumar com a ideia de que tinha deixado escapar uma pessoa muito especial.
Foi no fim da tarde de quarta-feira que recebi umas mensagens esquisitas:
Olá... Você vai estar em casa hoje?
Quem é?
Lilian, prima da Mon.
Fiz uma careta imensa. Estava no meu intervalo antes de iniciar os preparativos para o jantar no restaurante, encarando o telefone com curiosidade e desconfiança. Por que aquela doida estava me mandando mensagens, e ainda mais perguntando se eu estaria em casa? Resolvi ignorar. Se Mon soubesse como a prima estava se comportando, ficaria chateada, e o pior era que sobraria para mim se eu desse corda.
Contudo, Lilian continuou:
É que a família dela, e eu também, vamos jantar na casa dela hoje, achei que você fosse nos acompanhar...
Achei por bem responder, daquela vez:
Infelizmente, trabalho até tarde, mas se chegar a tempo passo para dar um oi.
Ela enviou prontamente:
Ah, que pena. Está certo, então. Beijos!
Daquela vez, não respondi. Fiquei estranhando muito o fato de ela ter o meu telefone, se nem Mon tinha. Ao menos nunca havia me perguntado e não me lembrava de tê-lo oferecido. Mais uma vez, ignorei aquela mulher, sem fazer ideia de que mais para frente me arrependeria de não ter dado um basta.
Percebi a movimentação na casa vizinha assim que cheguei. Pretendia tomar um banho e ficar apresentável antes de saudá-los, por isso fui entrando diretamente para o meu quarto. Para a minha surpresa, consegui ouvir uma conversa interessante:
—... A mudança me fez muito bem — Mon dizia, e seu timbre estava realmente sério e maduro. — Não me arrependo. Juro que vou ligar e aparecer mais vezes.
Ouvi alguns risos.
— Então vamos combinar assim: você fica com a gente aos domingos. Certo? — Aquela voz era de uma mulher mais velha, provavelmente da mãe.
— Não! — Mon gritou, em seguida diminuiu o tom: — Er... Meus domingos estão ocupados. Pode ser aos sábados?
Suas palavras me deixaram realmente emocionada. Aquela pessoa incrível ainda pensava em me acompanhar nos churrascos, depois de tudo? — O que você faz aos domingos, Mon? — a mãe questionou. — Ajudo uma amiga, que está passando por problemas.
Engoli em seco e fiquei ainda mais quieta. Não era para eu ouvir aquela conversa, mas foi inevitável.
— Que amiga?
— Minha vizinha. Aquela do hospital.
Houve alguns segundos de silêncio, e contive um riso.
— Vocês estão namorando? — Daquela vez a voz que soou, enciumada, foi masculina. Provavelmente, viera do pai de Mon.
— Não, pai... — ela acabou confirmando minhas suspeitas. — Só estou a ajudando. É importante. Ela me ajuda muito, então não posso deixar de ajudá-la.
Mais uma vez, ela me comoveu com seu jeito de se importar comigo. O que se seguiu foi uma pequena discussão entre Mon e seus pais a respeito do sumiço dela nos últimos dias. A mãe era uma pessoa bem firme, daquelas que não aceitava ser posta de lado. Ainda tratava a filha como se fosse uma criança, mas gostei que a minha vizinha não se deixou abater. Agiu com firmeza, respondeu à altura e deixou seu grito de liberdade ecoando no quarto, até que nada mais foi dito. Eles saíram para a sala.
Só então tomei um banho e vesti algo confortável, e ao mesmo tempo recatado, para falar com a família da vizinha. Mon abriu a porta antes mesmo que eu pudesse bater, encontrando-me na varanda do 104. Estava pronta para abraça-la, mas um grito ecoou de lá de dentro e a prima maluca se aproximou. A impressão que eu tive era a de que ela não tinha me atacado porque Mon ainda estava me olhando da porta.
— ei Moça ,Estávamos falando sobre você... Não morre mais!
Não soube como reagir àquilo, por isso apenas soltei um riso suave. A família de Mon já estava de saída, pois haviam chegado bem mais cedo. Todos saíram de uma vez para a varanda do 104 e cumprimentei um a um: pai, mãe, irmã, irmão e prima. Infelizmente não pude ignorar a sujeita, daria muito na cara de que algo estava errado. No entanto, ela parecia não se mancar: ficou me tocando sempre que teve a chance, tecendo comentários desconcertantes.
Ainda que foram embora todos juntos.
Quando me vi sozinho com Mon, respirei aliviado. Ela suspirou também, e foi subindo o olhar na minha direção com bastante calma, sem pressa. Parecia evitar esse momento, mas não teve jeito. Assim que nossos olhares se encontraram, abri um sorriso e pisquei um olho.
— Obrigado, Mon — falei de antemão, arranjando assunto. Eu não estava sabendo o que dizer a ela depois de três dias sem nos vermos.
A saudade gritava o meu juízo. Tudo o que eu mais queria era tomá-la em meus braços e passar aquela noite na sua cama, matando o desejo que latejava em meus nervos.
— Pelo quê?
— Por ter falado sobre os domingos. Eu... — pausei para encontrar as palavras certas. — Foi muito legal da sua parte. É... realmente muito, muito importante para mim ter a sua companhia.
Ela pareceu surpresa.
— Ouviu tudo?
Confirmei com um simples sorriso. Ela sabia que não dava para evitar, era possível ouvirmos através daquela parede fina. Mon deu um soco na própria testa. Não ficou feliz por saber que tomei ciência de seus dramas familiares, porém tratei logo de mudar de assunto:
— Senti a sua falta, amiga. Adorei a foto.
Eu a puxei pela cintura porque não resisti, precisava senti-la próxima ao meu corpo. Nossas bocas quase se uniram, mas Mon se desvencilhou a tempo, porém não sem ficar visivelmente afetada.
— Desculpa, esqueci — menti. Eu não tinha esquecido coisa nenhuma, sabia que não podia ter feito aquilo. Ela era mais forte do que eu, apenas isso. — E então... Como você está? — Muito bem, e você?
— Ótimo. Só cansada. Trabalhei muito hoje.
— Eu também.
Ela parecia realmente esgotada. Havia olheiras profundas ao redor de seus olhos meio opacos.
— Vim aqui só para te agradecer mesmo. E para dar um oi a sua família antes que fossem embora.
Achei por bem não mencionar as mensagens que sua prima andou me enviando. Queria poupar Mon do constrangimento.
— Beleza — falou, simplesmente.
— E, claro, para te ver — completei, percebendo que ela tinha ficado meio entristecida. — A saudade é um sentimento urgente...
— Obrigada, amiga. Tenha uma ótima noite! — Mon ficou nas pontas dos pés e me deu um beijo demorado muito perto da minha boca. Fechei os olhos e senti seu cheiro ao máximo, tragando tudo o que pude naquele curto espaço de tempo.
Infelizmente, afastou-se rápido demais.
— Está livre amanhã? — questionei, ansiosa.
— Amanhã? — Ela fez uma careta confusa. — Só à noite mesmo.
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A safada Mora ao Lado
RomansaDEIXO CLARO QUE A SAM É INTERSEXUAL A analista de sistemas Mon Phetpailin finalmente compra um imóvel e realiza o sonho de morar sozinha. Assim que ela se muda para a casa de número 104, descobre que sua nova vizinha, que ela apelida de Calvin, é um...