Capítulo XX - Nas garras de um predador natural

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Olhando o próprio reflexo na frente do espelho, Elise fazia uma careta nervosa. Não por causa da roupa que vestia, que estava muito bonita a propósito, mas sim porque estava agoniada com a proposta de Lud. Dirigir, claro que já havia pensado sobre isso, contudo não imaginou que seria assim, com o vampiro mais lindo e incrível do mundo ensinando-a num Impala 67.

Sempre que se dava conta disso, começava hiperventilar, com certeza teria um infarto. Nunca seria capaz de se perdoar se causasse um arranhãozinho que fosse na pintura perfeita do Impala. Respirando fundo, deu uma última olhada no visual e desceu para esperar Lud buscá-la, mas ainda assim a ansiedade a consumia por inteiro. Quando ouviu o celular tocando, pensou que fosse desmaiar. Era Lud e ele já estava parado lá fora.

— Nervosa? — o vampiro perguntou quando Elise sentou ao lado dele, fazendo com que o rosto da garota vertesse uma careta. Ele riu. — Acalma esse coração aí ou você vai morrer pelo meio do caminho. Relaxa, vai ser legal.

— Se eu fizer um arranhãozinho que seja nesse carro, eu juro que me mato — Elise declarou enquanto já iam na direção de sabe-se lá onde. Outra vez, Lud gargalhou.

— Tinha esquecido como é divertido estar com você — disse ele, pisando fundo no acelerador. Como no outro dia em que Elise o viu durante o dia, Lud usava a jaqueta de couro repleta de coisas penduradas, pins de bandas em maioria. — Mudando de assunto, parabéns, ruiva.

— Hã?

— Pelas provas. Ou já se esqueceu?

Agora foi a vez de Elise rir, realmente nem lembrava mais disso, já que tinha tanta coisa melhor para pensar, como em Lud por exemplo.

— É, esqueci. Estou muito ocupada pensando num certo vampiro aí — ela respondeu, enfim. — Mas obrigada. Sem você, teria sido terrível.

Lud balançou a cabeça em negação.

Nah, você é incrível — ao ouvir isso, Elise prendeu a respiração, não estava esperando algo assim do nada. Seu coração, que já havia se acalmado, voltou a bater muito rápido. — Já falei, você vai morrer assim, viu.

— A culpa é sua — Elise murmurou, fazendo um bico manhoso. Era impossível permanecer indiferente ao receber um tratamento tão doce e afetuoso.

E assim seguiram até chegar num grande campo de grama baixa e verdinha, que brilhava sob o sol conforme se movia com o vento suave. Elise suspirou aliviada ao ver a paisagem que os circundava, não havia nada além de mato por toda a vista que seus olhos alcançavam. Quando trocaram de lugar para que ela pudesse assumir a direção, a garota não conseguiu se impedir de suspirar de novo, nunca iria se acostumar com a beleza da pele do vampiro na luz do sol. Era tão lindo que por um momento ela esqueceu completamente o que haviam ido fazer ali.

No começo, ficou muito nervosa, mas depois de Lud calar seu falatório agoniado e incessante com um beijo repentino, as coisas fluíram melhor e logo estavam dando voltas com o Impala pelo campo verdejante. Aquela acabou sendo uma tarde muito divertida, então combinaram de continuar fazendo isso todos os dias até que Elise pegasse o jeito de verdade.

— Viu só, sem arranhão, sem explosão, tudo certo, nada errado — disse Lud com aquele tonzinho irônico petulante e Elise riu, enroscando os dedos nos cabelos castanhos do vampiro e beijando-o devagar.

Estava sentada no colo dele, no banco do passageiro, e lá fora os céus já mudavam de cor, anunciando que a noite chegava sem pressa, mas livre e bela. No rádio, um rock lento e melódico tocava, alguma banda que Elise não conhecia. Estavam muito, muito longe de qualquer outra pessoa e nada poderia incomodá-los ali, amavam isso. Amavam poder apenas desaparecer pelo mundo juntos como se ninguém mais além deles existisse.

Elise arfou e se afastou um pouco, precisando de ar.

Viu o olho carmesim descoberto pela franja brilhar e um arrepio cruzou seu corpo por inteiro, constantemente esquecia-se que estava nas garras de um predador natural, uma fera que poderia matá-la a qualquer instante, mas não o fazia apenas porque não queria, portanto toda vez que lembrava-se desse fato, era arrebatador.

Não conseguia impedir seu coração de bater mais rápido ou os morcegos de voarem com ferocidade em seu estômago, era incrível sentir-se daquele jeito, fraca, incapaz, mas ainda assim amada a ponto de não ser subjugada. Um limiar tão tênue e deleitoso que a fazia queimar por dentro.

Antes que mais um momento se passasse, Elise tomou o rosto de Lud entre as mãos e voltou a beijá-lo, ainda mais intenso do que antes. Ainda custava a acreditar que tudo isso era real, porém mesmo que duvidasse, não deixava nada lhe escapar, queria aproveitar tudo, cada mini-pedacinho daquela maravilhosa fantasia gótica.

Gemeu baixinho ao sentir o toque gelado em sua nuca, puxando-a para trás com firmeza e então arfou, outra vez precisava de ar. Mas mais do que isso, precisava de mais de Lud.

Queria toda a voracidade que o vampiro escondia sob a fachada irônica e o desinteressado olhar carmesim, aquela voracidade que somente ela sabia que ele podia oferecer.

Desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo sentir os dentes frios de Lud rasgando-lhe a pele e drenando seu sangue, nada no mundo lhe causaria um deleite maior do que saber que seu próprio sangue estava dentro dele, em comunhão com o corpo morto-vivo.

Contudo sabia que ele não faria isso, pelo menos não ainda. Ainda restavam as festas de formatura e todo o blá blá blá até que pudesse encerrar sua vida como humana. Então, para saciar o próprio desejo sem romper o acordo que havia firmado com Lud, Elise apanhou o canivete borboleta que sempre trazia consigo.

Geralmente ele ficava na bolsa, porém depois de descobrir esse método para sempre conseguir o que queria, passou a carregá-lo no bolso.

Apesar do escuro, a lâmina negra do canivete rebrilhava à luz suave da lua, que subia lentamente, cruzando os céus. E no rosto da garota um sorriso repleto de segundas intenções dançava. Antes que Lud tivesse a chance de protestar (e, pela cara que ele fazia, ele com certeza ia), Elise levou a lâmina à pele branca do seu antebraço.

No mesmo instante em que a garota fez uma leve pressão, a expressão do vampiro mudou. Mais uma vez, Lud tentava segurar aquele lado selvagem e feroz, não-humano, que carregava consigo, mas era difícil, bem difícil.

Mesmo que doesse, Elise continuou sorrindo enquanto abria um corte no próprio corpo, fazendo sangue vermelho rebentar devagar. Ver Lud daquele jeito, com a pupila do olho carmesim dilatada e saliva escorrendo pelo canto dos lábios enquanto ofegava, desejando-a como a nenhuma outra coisa no mundo ao mesmo tempo que brigava consigo mesmo para manter-se são, fazia tudo valer a pena.

No rádio, Thank you for the venom começou a tocar. Antes que a primeira gota caísse, manchando o banco do carro, Elise sentiu a língua gelada do vampiro deslizando por toda a extensão vermelha que havia tingido seu pálido antebraço a partir do ferimento autoimposto.

A garota gemeu de forma arrastada tanto pelo choque térmico quanto pelo formigamento que sempre se espalhava quando a saliva de Lud estava em contato com algum machucado. Era incrível, mesmo sendo tão frio, a fazia queimar como o sol.

E ela sempre queria mais e mais.

Com a habilidade adquirida ao longo dos anos, passou o canivete entre os dedos antes de o segurar corretamente de novo e assim profanou seu corpo outra vez, abrindo mais um talho e fazendo um pouco mais de sangue jorrar enquanto seus doces gemidos se misturavam com o agradável e barulhento rock que tocava.

Estava começando a achar que talvez os fanáticos religiosos estivessem certos, realmente estava em conluio com uma criatura demoníaca e antinatural, que se arrastava para dentro dela e a possuía de uma maneira que poderia virá-la do avesso e ainda assim ela agradeceria. Uma criatura que a venerava como uma deusa enquanto desfrutava de seu sangue, de sua vida humana, planejando ceifá-la em breve. O que poderia ser mais prazeroso do que pecar diante dos olhos de Deus, se deixando corromper pelo sacrilégio?

Naquele fechado espacinho apertado, tudo parecia ainda mais intenso. Cada som e movimento, mais real. Sinceramente, se Deus realmente existia e era tão onipresente e onipotente quanto diziam, será que ele se importava mesmo com duas pobres almas apenas desejando ser felizes por meios não convencionais?

Para toda a eternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora