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Leon

Kay: Ela é perfeita.
Estou piscando bem devagar no ônibus. Piscadas lentas e maravilhosas que, na verdade, são sonecas curtas.
Eu: Sério? Não é chata?
Kay, parecendo irritada: Que diferença faz? Ela é limpa, organizada e pode se mudar já. Caso esteja mesmo decidido a fazer isso, não tem como esperar coisa muito melhor.
Eu: Ela não ficou incomodada com o homem estranho do apartamento 5? Ou com a família de raposas?
Breve pausa.
Kay: Ela não considerou nada disso um problema.
Piscada maravilhosamente lenta. Muito longa. Preciso tomar cuidado — não posso acordar no ponto final do ônibus e ter que voltar tudo de novo. Sempre um perigo depois de uma semana longa.
Eu: E como ela é?
Kay: Ela é... diferente. Meio exagerada. Estava usando um daqueles óculos escuros grandes com armação de tartaruga, apesar de ainda ser inverno, e tinha flores pintadas nas botas. Mas o importante é que está dura e muito feliz por ter encontrado um quarto tão barato!
“Exagerada” é o termo de Kay para gorda. Queria que ela não dissesse coisas assim.
Kay: Olha, você já está vindo pra casa, não está? A gente pode conversar quando você chegar.
Meu plano era cumprimentar Kay com o beijo de sempre, tirar minha roupa do trabalho, beber água, cair na cama dela e dormir por uma eternidade.
Eu: Que tal hoje à noite? Depois que eu dormir?
Silêncio. Silêncio extremamente irritado (sou especialista nos silêncios de Kay).
Kay: Então você vai direto para a cama quando chegar.
Mordo a língua. Resisto à vontade de descrever minha semana em detalhes.
Eu: Posso ficar acordado se você quiser.
Kay: Não, não, você precisa dormir.
Óbvio que vou ficar acordado. É melhor aproveitar as piscadas-sonecas até o ônibus chegar a Islington.
• • • Recepção fria de Kay. Cometo o erro de mencionar Richie, o que faz a temperatura despencar ainda mais. Minha culpa, provavelmente.
Não posso falar sobre ele sem ouvir A Discussão, como se ela apertasse o play toda vez que escutasse o nome de Richie. Enquanto ela prepara o “cantar” (combinação de café da manhã e jantar, perfeita tanto para os habitantes do dia quanto da noite), repito para mim mesmo que deveria me lembrar de como A Discussão terminou. Que ela pediu desculpa.
Kay: E então, vai me perguntar sobre os fins de semana?
Eu a encaro, demoro a responder. Às vezes é difícil conversar depois de uma noite longa. Abrir a boca para formar ideias compreensíveis é como erguer algo muito pesado, ou como um daqueles sonhos em que a gente precisa correr, mas nossas pernas estão se arrastando por algo espesso.
Eu: Perguntar o quê?
Kay faz uma pausa, omeleteira na mão. Fica muito bonita à luz do sol de inverno que entra pela janela da cozinha.
Kay: Sobre os fins de semana. Onde você planeja ficar quando Tiffy estiver no seu apartamento?
Ah. Entendi.
Eu: Esperava poder ficar aqui. Já que fico aqui todo fim de semana em que não estou trabalhando.
Kay sorri. Fico satisfeito por ter dito a coisa certa, mas logo sinto uma pontada de ansiedade.
Kay: Eu sabia que você planejava ficar aqui, viu? Só queria ouvir da sua boca.
Ela vê minha expressão perplexa.
Kay: Normalmente, você só fica aqui nos fins de semana por coincidência, não porque tenha planejado. Não porque seja nosso projeto de vida.
A palavra “projeto” fica muito menos agradável com a expressão “de vida” logo depois. De repente, estou muito ocupado comendo omelete. Kay aperta meus ombros, deixa os dedos correrem para cima e para baixo na minha nuca e puxa meu cabelo de leve.
Kay: Obrigada.
Me sinto culpado, apesar de não ter enganado Kay de verdade — supus mesmo que ficaria aqui todo fim de semana, contei com isso ao planejar alugar o quarto. Só não... pensei nisso desse jeito. Como um “projeto de vida”.
• • • Duas da manhã. Quando entrei para a equipe noturna da casa de repouso, as noites em que não trabalhava pareciam inúteis. Ficava sentado, acordado, esperando a luz do sol. Agora esse é meu momento: o silêncio abafado, o restante de Londres dormindo ou se embebedando. Estou pegando todos os turnos da noite que a coordenadora de recursos humanos da casa de repouso me dá — são os mais bem pagos, a não ser pelos turnos da noite no fim de semana, que prometi a Kay que não pegaria. Além disso, esse é o único jeito de fazer a divisão do apartamento funcionar. Nem sei se vale a pena ficar acordado em outro horário nos fins de semana agora — vou trabalhar cinco dos sete dias da semana. Melhor continuar sendo noturno.
Normalmente uso esse momento às duas da manhã para escrever para Richie. Há limite para ligações, mas ele pode receber quantas cartas eu quiser mandar.
Na última terça, fez três meses que ele foi condenado. Difícil saber como marcar uma data assim. Brindando? Fazendo outra marca na parede? Richie está aceitando bem, levando tudo em consideração, mas, quando foi preso, Sal tinha dito que o tiraria de lá até fevereiro, então este aniversário foi muito ruim.
Sal. Ele está se esforçando, supostamente, mas Richie é inocente e está na cadeia, então não posso deixar de ter certo ressentimento pelo advogado. Sal não é ruim. Usa palavras grandes, carrega uma pasta, nunca duvida de si mesmo — as características clássicas de um advogado que passa confiança, não? Mas continua cometendo erros. Como vereditos inesperados de culpa.
Mas quais são nossas opções? Não há outro advogado interessado em pegar o caso de Richie por um preço menor. Nenhum outro advogado familiarizado com o caso, pronto para falar com Richie na prisão... Não há tempo para encontrar outra pessoa. A cada dia, Richie se afasta mais e mais.
Também sou eu que tenho que lidar com Sal o tempo todo, nunca minha mãe, o que gera muitos telefonemas exaustivos atrás dele. Mas minha mãe grita e aponta dedos. Sal é sensível, pode desistir fácil de trabalhar no caso de Richie e é absolutamente indispensável.
Isso não ajuda em nada. Duas da manhã é um horário horrível para pensar em questões legais. Pior hora de todas. Se meia-noite é a hora das bruxas, duas da manhã é a dos monstros da aflição.
Procurando uma distração, me pego pesquisando Johnny White. O amor perdido de rosto hollywoodiano do sr. Prior.
Existem muitos Johnny White. Um é uma figura importante da música dance do Canadá. Outro é jogador de futebol americano. Os dois com certeza não estavam vivos na época da Segunda Guerra Mundial, nem se apaixonaram por cavalheiros ingleses charmosos.
Bem, é para isso que serve a internet, não é?
Busco Johnny White morto na guerra e me odeio um pouco por isso.
Parece que estou traindo o sr. Prior ao supor que Johnny esteja morto. Mas vale a pena tentar eliminar essas opções primeiro.
Encontro um site chamado Encontre mortos na Guerra. Fico um pouco horrorizado de início, mas percebo que, na verdade, é incrível — todos são lembrados ali. Como túmulos digitais pesquisáveis. Posso pesquisar por nome, regimento, guerra, data de nascimento... Digito Johnny White e especifico Segunda Guerra Mundial, pois não tenho nenhuma outra informação.
Setenta e oito Johnny White morreram no Exército durante a Segunda Guerra Mundial.
Eu me recosto na cadeira. Observo a lista. John K. White. James Dudley Jonathan White. John White. John George White. Jon R. L.
White. Jonathan Reginald White. John...
Tudo bem. De repente tenho certeza absoluta de que o lindo Johnny White do sr. Prior está morto. Gostaria que houvesse um banco de dados parecido para aqueles que lutaram e não morreram na guerra. Seria legal. Uma lista de sobreviventes. Fico abalado, típico de alguém, às duas da manhã, com o horror da humanidade e sua disposição para terríveis atos de assassinato em massa.
Kay: Leon! Seu bipe está tocando! No meu ouvido!
Deixo o laptop no sofá depois de apertar “imprimir”, abro a porta do quarto e vejo Kay deitada de lado, edredom cobrindo a cabeça, um braço erguido segurando meu bipe.
Pego bipe. Pego telefone. Não estou de plantão, claro, mas a equipe não me biparia se não fosse importante.
Socha, residente de primeiro ano: Leon, a Holly.
Estou calçando sapatos.
Eu: É muito ruim?
Chaves! Chaves! Cadê as chaves?
Socha: Ela está com uma infecção. Os exames não estão nada bons. Ela quer ver você. Não sei o que fazer, Leon, e a dra. Patel não está atendendo o bipe, o residente está esquiando e June não conseguiu achar ninguém para me cobrir, então não tenho mais quem chamar...
Chaves localizadas no fundo da cesta de roupa suja. Lugar criativo para guardá-las. Vou até a porta, Socha falando sobre contagem de leucócitos, cadarços batendo...
Kay: Leon! Você ainda está de pijama!
Droga. Bem que achei que tinha chegado até a porta mais rápido que o normal.

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