CAPÍTULO 3 - A HORA CERTA DAS COISAS

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COM A MORTE DO MEU TIO, e a formatura da Bianca, meu pai a convenceu que deveria retornar à New Peopple, sem nem mesmo tentar ingressar na residência de cirurgia geral que ela tanto sonhava. Eu me permiti olhar para ela por algum tempo e entender seus motivos.

Os argumentos do meu pai eu conhecia intimamente, e eram muito sedutores para a personalidade doce e altruísta da Bia. "Precisamos de médicos em New Peopple, meu amor"; "Sentimos muita falta de vocês"; "Você ainda é tão nova, em breve você retorna e ingressa na residência"; "Tenho certeza que um dia será uma grande cirurgiã, mas hoje, você será um anjo que New Peopple precisa".

Eu sei que a ideia de nos mandar para o Rio de Janeiro foi do meu tio Eduardo. Sei também, que ele fez isso porque queria proteger nós duas. Uma cidade pequena não seria o lugar ideal para a gente. E, meus pais aguentaram os oito anos com as duas filhas longe. Agora, eles nos queriam de volta.

Enquanto eu olhava para a Bianca, lembrar de tais frases e intenções chegou até a me emocionar, entretanto, olhando para o chão, achei uma chantagem sentimental injusta e egoísta.

Quer dizer, eu não estava vivendo no mundo das maravilhas, porém, estava quase vivendo ou morta, de maneira digna, pelo menos.

Além disso, quando saímos daquela cidade, tudo aconteceu pela iniciativa dos meus pais, e do meu tio Eduardo. Nunca foi preciso explicar que a mudança foi uma forma de nos "esconder" para o nosso próprio bem.

Com Bianca voltando para New Peopple, meu pai começou a surtar com a possibilidade de eu morar sozinha. Os sentimentos dele me invadiam. Não havia medicação suficiente, não havia nenhuma venda capaz de obstruir minha visão, acho que nem se eu ficasse cega iria conseguir me esquivar.

Ainda estava extremamente fragilizada pela morte do meu tio. As coisas não funcionavam da forma que fui acostumada. Meus "poderes" estavam em uma espécie de pane, assim como o meu corpo e minha mente.

Eis aqui um outro perigo: sentimentos muito intensos de pessoas realmente importantes para mim. Eles não conhecem limites! São capazes de violar minha mente e me controlar completamente por tempo indeterminado.

Desde que percebi que lutar seria o caminho para enlouquecer cada vez mais rápido, aprendi a internalizá-los raciocinando sobre o assunto.

Agindo como eu julguei ser o melhor, avisei meu pai por telefone, enquanto estava preparando uma planilha com os recursos que teria que repassar ao meu substituto, sobre o meu retorno com Bianca para New Peopple.

Quilômetros de distância e a clara impossibilidade de olhar para ele não me impediram de sentir o alívio que ele sentiu.

Naquele exato momento, em que meu pai respirava aliviado, meus sentimentos eram o problema. Pela primeira vez tive certeza absoluta: estava condenada à uma prisão.

Acontece, que sentimentos não são tão simples assim. Decepção nunca é só decepção; orgulho, sempre tem um sentimento que lhe acompanha; dor é um sentimento que eu nunca senti isolado, ele está sempre interligado com uma corrente interminável de emoções.

Amor... amor existe em várias formas. É cem vezes mais intenso que o ódio. O amor desinteressado é tão lindo, que eu consigo quase tocar. É a visão de um campo verde, com um livro e uma árvore para recostar, já preparada com uma almofada e a garantia de que não existem cobras por ali.

Entretanto, já senti amor com interesse, e não era feio. Uma vez, no shopping, havia um homem, não muito bonito, com aproximadamente cinquenta anos, acompanhado de uma jovem muito bonita de no máximo vinte e cinco anos. Eu esperava Bianca experimentar todas as saias da loja, enquanto me permiti sentir o que eles sentiam.

Havia interesse. Ele se interessava pela beleza dela. Havia felicidade em poder circular com ela agarrada em seus braços. Já ela, se interessava pelos bens que ele podia oferecer, e demonstrava um orgulho de poder entrar na loja e escolher a roupa que quisesse.

Nesse momento, "julgando" a raça humana pelo meu dom, fuzilando os dois como se eu fosse a rainha da perfeição e a melhor pessoa do universo, eu senti amor. Eles se amavam. Claro que as circunstâncias eram favoráveis, só que ali, havia amor. Não sei quem inventou que amor só existe quando é puro.

O amor desse casal, por exemplo, não era um campo verde, com um livro e uma árvore para recostar, mas era uma festa, onde você conhecia várias pessoas e conversava com elas animadamente.

Ou seja, os sentimentos nunca são claros como podem parecer. A ansiedade contida em uma frase que transmite algo falso, é, na essência a ansiedade de um pai que espera o filho nascer, de uma adolescente que se mantém ao lado do celular esperando o telefonema do namorado, etc. As nuances de cada sentimento são o que realmente importa. Nisso, eu já tinha doutorado.

Finalmente me atentei que se o medo de outras pessoas era perigoso, o amor que eu sentia por poucos era um sinal de perigo que gritava, piscava e se pudesse, socava o meu rosto. Os meus sentimentos mais lindos eram uma prisão ainda maior do que eu poderia imaginar.

Subterfúgio: não há tempo para pensarOnde histórias criam vida. Descubra agora