Ele estava aqui !

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Capítulo 18

Claridade. Merda de claridade.
Abri meus olhos devagar, adaptando minhas pupilas à luz que se esparramava quarto adentro, e assim fiquei por algum tempo: pensando se deveria virar e dormir de novo, sentindo cada parte de meu corpo reclamar de cansaço (e algumas partes específicas reclamando de dor), ou simplesmente fitando o nada.
Ouvi um chiado suave interromper o silêncio divino, e fechei preguiçosamente os olhos. Parecia que alguém já estava aprontando no andar de baixo. E esse alguém só poderia ser Fe, que não estava mais ao meu lado, já que seu lugar na cama estava vazio pelo que minhas mãos puderam tatear.
De repente, tudo veio como um flash em minha mente. Pesadelo. Andar de baixo. Cozinha. Morangos. Balcão.
Rafael.
Me vi sentada no instante seguinte, descabelada e com o coração acelerado. Então tinha sido mesmo verdade. Eu não tinha imaginado nem sonhado nada daquilo. Eu jamais poderia inventar algo com aquele grau de realidade, que me fizesse ofegar só de lembrar.
Apoiei meus cotovelos em meus joelhos dobrados, enterrando meus dedos em meus cabelos e deitando minha cabeça sobre as palmas das mãos. Fechei os olhos, sentindo a sonolência voltar a me dominar e a dor pelos movimentos bruscos se manifestar, e balancei a cabeça levemente em negação. Desaprovando minha atitude, e ao mesmo tempo, totalmente derrotada na luta contra ela. Era simplesmente impossível resistir à mera lembrança de tudo aquilo que eu tentava desesperadamente recusar.
- Tonight I'm gonna have myseeelf a real good time - ouvi Fe cantarolar do andar de baixo, nitidamente tentando não me acordar, mas o silêncio era tamanho que até seus sussurros seriam perfeitamente audíveis.
Tentei sorrir fraco, imaginando sua carinha de felicidade, mas não consegui. Eu me sentia oca, sem emoções. Tudo parecia automático, programado, friamente calculado, como se fosse uma verdade absoluta: eu amava Fe, mas meu corpo, meus instintos, um grito no fundo de minha alma chamava por Rafael. E esse grito era tão ensurdecedor que me dominava por completo, me fazia perder a noção e o senso de qualquer coisa... Só se calava quando eu estava com ele.
Voltei a me deitar, ou melhor, joguei meu tronco pesadamente de volta à cama, fitando o nada, e deixei um suspiro escapar de meus pulmões, denunciando meu desespero. As lembranças da noite anterior continuavam mais do que frescas em minha mente, mas eu não queria me deixar levar por elas. Eu me sentia extremamente suja por ter caído em tentação novamente, mas de certa forma, a dor já não era mais tão sufocante, assim como a culpa parecia menor, mesmo que só um pouco. Se eu tivesse ao menos um pingo de juízo, o oposto estaria acontecendo, e seria praticamente impossível respirar, tamanho o peso de meu remorso. Mas a sensação de estar com Rafael, ter sua pele quente e macia contra a minha, sentir sua força me puxando para mais perto de si, seu perfume me envolvendo, me asfixiando, como um tipo de gás letal, arrepiava meu corpo inteiro e acelerava meu coração como nunca. Pelo visto, eu estava certa quanto ao meu próprio caráter: eu realmente não prestava.
Deixei meus olhos se perderem pelo teto branco, passando rapidamente pela fase da aceitação e me concentrando em decidir o que fazer dali em diante. Pra que me martirizar por algo irreversível, por mais que esse algo ainda doesse em mim? Não adiantava mais chorar pelo leite derramado; correr para cortar os pulsos ou encarar aquela situação com o mínimo de maturidade que ela requeria não apagaria os acontecidos da noite anterior.
Por isso, apenas respirei fundo, deixando que o oxigênio afogasse as imagens de Rafael de minha mente, e tomei uma decisão: eu precisava me manter íntegra, mesmo que só externamente, por uma única e essencial razão em minha vida. Fe. A partir daquele momento, eu teria que ser firme, e dessa vez, pra valer. Eu já havia deixado que três deslizes acontecessem, e se eu realmente pretendia me manter firme em minha decisão, jamais poderia permitir que uma situação como aquela se repetisse. Daquele dia em diante, eu não iria mais pensar nele, ou sequer deixar que sua mera lembrança ou presença me afetassem.
Eu não deixaria aquilo acontecer novamente.
Passei vários minutos repetindo mentalmente aquela mesma frase, e me levantei devagar, sentindo meus músculos cansados reclamarem em vão. Conforme caminhava até o banheiro, me lembrei do que havia dito a Rafael há poucas horas atrás... Metade de mim não podia ficar sem sua outra metade. Um não era completo sem o outro. Parei na frente do espelho, encarando meu reflexo sonolento, e suspirei novamente, empurrando minha escolha garganta abaixo. Poderia levar alguns dias, mas eu não deixaria nada mudar minha decisão agora que eu havia escolhido o que queria. No início, talvez eu precisasse de um pouco a mais de autocontrole para não me deixar pensar nele, mas no fim das contas, eu sobreviveria. Afinal de contas, pra que eu preciso de dois homens, se um já me dava tudo que eu precisava? Por que eu precisaria de sexo se já tinha um namorado perfeito?
Tomei uma rápida ducha, eliminando todo e qualquer vestígio físico da presença de Rafael na noite passada que ainda sobrevivia em minha pele, e escovei meus dentes, ainda mantendo meu humor determinado e otimista. Vesti uma blusinha regata, um shorts de pijama, penteei meus cabelos e soltei um último suspiro antes de descer as escadas.
- Bom dia! - Fe sorriu ao me ver, somente de bermuda, já à minha espera ao pé da escada. Fora seu sorriso e seus olhos mais do que felizes, como sempre, ele parecia anormalmente empolgado, e o motivo disso não era nenhum mistério pelo jeito que ele me olhava. Mesmo com todos os conflitos que eu guardava dentro de mim e sentindo meu emocional um pouco estremecido, não consegui evitar que um sorriso iluminasse meu rosto assim que o vi.
- Bom dia - falei num tom divertido, parando no último degrau pra ficar da mesma altura que ele e retribuindo seu selinho carinhoso - Nossa, um pente passou longe daqui, imagino.
Segurei seus ombros, ajeitando-o de frente pra mim com as mãos suando frio, e ele me fitou com dúvida na expressão e os cabelos consideravelmente desgrenhados. Aproveitei que a toalha que eu havia usado para secar meus cabelos ainda estava sobre meus ombros e a coloquei em sua cabeça, esfregando-a nos cabelos dele e umedecendo-os, mais pra brincar com ele do que pra realmente ajeitá-lo. Quando tirei a toalha, com uma cara sapeca, encontrei um Fe rosado, confuso e extremamente sexy me encarando, com seus cabelos ainda desarrumados.
De um jeito extremamente, dolorosamente, ironicamente parecido com Rafael.
- Melhor assim? - ele perguntou, com um sorriso descrente e uma sobrancelha erguida, só piorando minha situação. Papai do céu realmente adorava me ver metida em encrencas. O que eu fiz para merecer passar por tamanha provação?
- Muito - confirmei, assentindo uma vez e ignorando a semelhança entre os estilos de cabelo de meus professores. Acho que nem prostitutas deviam sofrer daquele jeito.
- Hm... Se você diz - Fe deu de ombros, um pouco vesgo de tanto olhar pra cima, no esforço vão de ver seu próprio cabelo, e logo depois me olhando - Com fome?
Assim que ele disse aquelas duas palavras, meu estômago urrou. Mordi meu lábio inferior ainda dolorido da noite anterior (chega de citar essa maldita noite! Rafael Vitti não existe mais!) e fiz cara de cachorrinho sem dono.
- Awn - Fe sorriu, achando minha cara fofa e fazendo uma carinha ainda mais fofa - Não precisa nem responder, amor, vamos tomar nosso café-da-manhã.
Ele me deu as costas, indicando que me carregaria até a cozinha, e eu nem pensei em recusar o convite, deixando que ele me levasse com uma expressão quase que infantil. Além do mais, ser carregada pelas costas nuas de Fe era bem mais agradável que esforçar minhas pernas doloridas para andar pelo chão frio.
- Não acredito... Omelete? - perguntei, respirando fundo pra sentir o cheiro bom da comida dele quando sentei (lê-se: fui depositada feito uma carga frágil) numa das cadeiras da mesa de jantar - Justo a sua omelete?
- Isso mesmo, justo a minha omelete - ele riu, indo até o fogão, tirando uma omelete grande de dentro de uma frigideira do mesmo tamanho e colocando-a num prato pra mim - Do jeito que você gosta.
Fe se aproximou com meu prato, e assim que o colocou à minha frente, deu um beijo estalado em meu pescoço, aproveitando que eu tinha acabado de fazer um coque frouxo em meu cabelo. Ele voltou a se afastar pra pegar seu café-da-manhã, e eu, ainda rindo do jeito dele, me servi com o suco de laranja que estava na mesa.
- Hm, você por acaso assaltou a geladeira ontem à noite? - ele perguntou distraidamente enquanto cortava sua omelete, após alguns minutos comendo, e meu medidor de perigo apitou - Os morangos que eu tinha visto lá dentro estavam em cima da pia quando acordei.
Me esforcei muito pra não engasgar com a comida naquele momento, e engoli o pedaço de omelete quase inteiro com muito esforço, incapaz de mastigá-lo direito diante do medo que a pergunta dele me causara. Eu tinha me esquecido de guardar os morangos. Que merda.
- É, eu... - balbuciei, encarando fixamente minha omelete e tentando parecer casual - Eu fiquei com fome e... Acabei comendo alguns morangos... Me desculpe.
Não foram só os morangos que foram comidos naquela noite, mas preferi omitir essa parte da história. Foco, Isabella!
- Tudo bem, Bella - Fe sorriu, sem notar nenhuma diferença em meu jeito, como sempre (ele devia aprender que confiar em mim estava ficando perigoso) - Eu devia ter sido responsável e cozinhado alguma coisa pra gente ontem à noite.
Comemos calmamente após minha crise de pânico se dissipar, e quando me dei conta, já estávamos planejamos como seria nosso dia num clima mais agradável, pelo menos para ele. O sol reinava absoluto no céu azul, o mar parecia extremamente convidativo diante do considerável calor, e nossos planos para as próximas horas envolviam exatamente esses fatores. Praia, sol, mar e descanso. Bom, descanso físico estava garantido pros dois, mas mental... É, desse eu acho que só Fe poderia desfrutar.
- Ei, rapaz, vem cá - chamei assim que saímos de casa, segurando meu professor (que agora mais parecia aluno de primário, tamanha era a sua animação) pelo braço quando que ele fez menção de correr para a praia - Nem pense em se meter debaixo desse sol sem protetor solar.
Ele revirou os olhos, fazendo cara de criança emburrada, e eu ri, enquanto passava protetor solar em suas costas. Quando foi a vez de passar na frente, o que eu fiz questão de fazer, ele fechou os olhos e sorriu pervertidamente, tirando proveito de meus toques. Se ele pôde usufruir da mesma situação antes de sairmos da casa, ao passar protetor em mim (e demorar meia hora só pra isso), eu tinha todo o direito de fazer o mesmo com ele (e demorar o quanto eu quisesse também).
- Sabe, eu estou de sunga - ele comentou, quando eu estava cuidando de suas coxas com um pouco mais de vagarosidade que o necessário - E não vai ser muito... Confortável se você continuar a me provocar desse jeito.
Revirei os olhos, com um sorriso de canto, e atendi seu pedido. Coloquei um pouco de protetor na palma da mão, e com o indicador, passei um pouco dele no nariz e bochechas de Fe, retribuindo seu olhar divertido. Espalhei um pouco mais de protetor pelo seu rosto, e o resto, coloquei em seus ombros, região onde nunca era demais proteger.
- Agora sim, protegido - falei, com voz de mãe, apertando a bochecha dele, que fez uma careta - Pode mergulhar agora.
- Não - ele respondeu, e um sorriso danado surgiu em seu rosto - Podemos mergulhar agora.
Antes que eu pudesse abrir a boca pra protestar, ou tirar meu chapéu de praia e óculos escuros, Fe já me carregava em direção ao mar, correndo comigo em seu colo. Largando apressadamente meus apetrechos de praia pela areia, me encolhi como um feto em seus braços, já sentindo a temperatura fria do mar antes mesmo de entrar nele e soltando um gritinho desesperado que o fez rir.
- Ah, meu Deus, que frio! - falei entre dentes quando alcançamos a água gelada, e ele continuou me levando mar adentro até atingirmos uma altura nem muito rasa, nem muito funda.
- Não tem problema, eu te esquento - ele riu, me colocando no chão e me abraçando pela cintura.
- Que frase mais clichê, Felipe - resmunguei com um sorriso divertido, dando-lhe um abraço apertado e depositando um beijo em seu queixo - Mas eu acho bom mesmo você me esquentar, senão eu vou ficar muito brava.
- Uuh, essa eu quero ver - Fe gemeu, fazendo uma cara exagerada de desejo e me mandando um beijo, acompanhado de uma piscadinha - Fica bravinha, vai.
- Idiota - gargalhei, empurrando-o pelo peito e não conseguindo muito mais do que me afastar dele por dois segundos - Vou te mostrar quem é a bravinha.
- Duvido - ele desafiou, olhando pra cima como quem quer disfarçar alguma coisa, e eu me enfezei: deixei que meus joelhos se dobrassem, fazendo com que meu corpo todo imergisse na água cristalina, e voltei a emergir alguns metros depois, já fora do alcance dos braços dele. Surpreso com a minha súbita agilidade, ele foi pego de olhos arregalados e boca aberta quando eu joguei uma grande quantidade de água em seu rosto.
- Ai, meu Deus! - exclamei, levando as mãos molhadas à boca em sinal de espanto, sem saber se ria ou se ficava com pena - Desculpa, amor!
Corri até Fe, que cobria o rosto com as mãos e se mantinha curvado, e me abaixei para poder ver o estrago que a água salgada tinha feito. Assim que o fiz, ele me pegou desprevenida e revidou o golpe, jogando o triplo de água em mim e me encharcando na mesma hora.
- Você pediu, mocinha! - ele riu, mesmo com os olhos vermelhos, e eu não pude deixar de rir da cara dele, típica de criança que tomou um caldo.
- Você sabe correr, Simas? - perguntei, fechando os olhos e um sorriso bravo - ENTÃO É MELHOR APRENDER!
Fe soltou um gritinho quase afeminado, fingindo medo, e saiu correndo, sendo seguido por mim apesar da dificuldade que a água causava. Ficamos nos divertindo no mar por um tempo que não consegui calcular, até que ele finalmente resolveu me deixar tomar sol enquanto se deitava na espreguiçadeira ao meu lado, lendo um livro e parecendo ainda mais branco que suas páginas devido à grande quantidade de protetor solar que eu passei nele. Vez ou outra, ele dava um mergulho, e quando voltava, se recusava a passar outra camada de protetor, apesar de meus avisos constantes de cuidado. O sol estava forte demais pra uma pessoa desacostumada como ele se expor daquela forma.
O dia se passou calmamente, entre amassos e mergulhos, e só saímos da praia uma única vez, para almoçar uma salada leve que preparamos juntos. Quando já estava escurecendo, ficamos observando o pôr-do-sol, como na tarde anterior, e entramos na casa para tomar banho assim que o céu se tornou totalmente escuro.
- Ai, Bella - ele choramingou ao sair do banheiro. Eu já tinha tomado meu banho, e estava sentada na ponta da cama passando creme em meus cabelos enquanto olhava vagamente para a TV ligada à minha frente.
- O que foi? - perguntei, e quando olhei na direção dele, meus olhos e boca se abriram imediatamente. Ele estava todo vermelho, principalmente na região abaixo dos olhos, onde ele sempre esfregava depois de sair da água por causa do sal. Seus olhos estavam lacrimejando um pouco, e sua expressão era de agonia.
- Tá ardendo - ele disse com a voz chorosa, andando devagar na minha direção pra não arder nada, e eu corri até ele, penalizada. Fiz menção de tocá-lo, mas logo voltei atrás, pelo pânico que seus olhos demonstraram ao perceber minha intenção.
- Eu bem que te avisei pra passar mais protetor, Fe! - gemi, mordendo meu lábio inferior e morrendo de pena - Vem, senta aqui que eu passo creme em você.
Conduzi Fe pela mão, o único lugar que parecia não estar ardendo tanto, até a cama, e ele se sentou cuidadosamente, somente de boxers. Eu subi na cama atrás dele, já com o creme pós-sol em mãos, e comecei a espalhá-lo por seus ombros suavemente, enquanto ele apenas se mantinha imóvel, com medo de que algo ardesse a qualquer movimento. Quando tudo já tinha sido devidamente tratado e cheirava maravilhosamente bem graças ao creme, ele sorriu pra mim, parecendo um camarãozinho. Um camarãozinho muito agradecido, diga-se de passagem.
- Desculpa, Bella - ele murmurou, fazendo uma carinha triste, e na mesma hora eu franzi a testa em sinal de confusão, ajoelhada em sua frente - Agora eu mal vou poder te abraçar.
Dei um sorriso compreensivo, sentindo uma leve pontada de agonia. Alguém me explica por que minha recém-adotada doutrina anti-Rafael me pareceu ainda mais difícil de ser seguida após essa conclusão de Fe?
- Tudo bem, amor - falei, engolindo todos os meus pensamentos e brincando timidamente com seus dedos - Eu não me importo, de verdade.
E não me importar seria mil vezes mais fácil se Rafael aparecesse mais tarde. Pensando bem, ai dele se não aparecer. Será um homem desonrado, se é que você consegue associar essa palavra à existência de bisturis afiadíssimos nos laboratórios de biologia.
OK, finja que eu não pensei isso. Minha mente é podre demais pra ser levada a sério.
- Eu queria que esse fim de semana fosse perfeito - Fe sussurrou, segurando minhas mãos com tamanha delicadeza que elas pareciam ser feitas de um material sagrado - Mas como sempre, eu estraguei tudo.
- Ei - resmunguei, fazendo cara de brava - Não começa, Simas.
Ele apenas suspirou e ergueu seu olhar de minhas mãos para meus olhos, sorrindo logo depois e dizendo:
- Você não existe mesmo.
É, eu sei. Outra coisa que não existe é uma coisa chamada tempo. Cadê ele que não passa pra que Rafael chegue logo?
Argh... Não preciso nem dizer que é pra você riscar essa frase da sua memória também. Talvez nem o inferno seja ruim o suficiente pra mim.
- Como não? Estou bem aqui - sorri fraco, procurando seu olhar baixo com o meu e me sentindo uma tremenda hipócrita, falsa, traidora e metida, mas sem deixar tudo isso transparecer. Fe riu por alguns segundos, mas logo voltou a fazer cara de dor, e eu o imitei inconscientemente. Aquela noite seria um tanto sofrida para ele, pobrezinho.
Ficamos por mais umas duas horas deitados na cama, vendo TV e conversando, tendo que nos contentar somente com o contato corporal de nossas mãos dadas. Pela primeira vez na vida, o tempo com Fe me pareceu vagaroso, lento, quase entediante. E quando enfim ele adormeceu pesadamente, feito uma criança cansada de todas as estripulias feitas durante o dia, eu me vi sem saber o que fazer. E totalmente sem sono.
Subitamente, uma euforia estranha tomou conta de mim, como um animal fincando suas garras e declarando território dentro de meu peito. Uma ansiedade incontrolável me dava a sensação de que cada pedaço de mim tremia de agonia, e o ar não encontrava espaço em meus pulmões, me causando uma certa tontura. Olhei instintivamente pro relógio, me sentindo sufocada: uma e dezenove. Já era tarde e só o que eu deveria fazer era deitar e tentar dormir. Mas meu corpo implorava para sair dali.
Me esgueirei pra fora da cama, e felizmente, Fe continuou imóvel. Desci as escadas, sentindo minhas pernas trêmulas, e prendi meu cabelo de qualquer jeito, com a intenção de refrescar minhas costas. Merda de ansiedade idiota que me fazia suar frio. Abri a geladeira e enchi um copo com água, dissolvendo uma pitada de açúcar nele e engolindo todo o seu conteúdo em menos de cinco segundos. Água com açúcar não costumava adiantar comigo, mas eu tinha que tentar de tudo.
Os segundos foram se acumulando devagar, transformando-se em minutos, e o sono simplesmente se recusava a vir. Me peguei perambulando ao redor dos móveis da sala, com o olhar fixo em qualquer parte do piso e a mente perdida em só Deus sabe quais pensamentos. Quando olhei para o relógio da cozinha, ele já marcava duas e trinta e sete, e eu me sentia como se tivesse acabado de acordar do sono mais revigorante de minha vida. Bufei, frustrada com minha insônia inexplicável, e me joguei no sofá, derrotada. Olhei distraidamente pela janela da sala, e quando finalmente assimilei o que vi, quase pulei de susto: faróis se aproximavam rapidamente da casa, anunciando a chegada de um carro. Meu coração quase foi parar perto de meu cérebro, tamanho foi o meu susto, assim como foi simplesmente impossível não pensar numa das únicas pessoas que passariam por aquela rua àquela hora da noite.
Sem que eu me desse conta do que estava fazendo, vi que estava de pé, e caminhava energicamente em direção à porta da casa. Por mais que minha consciência me alertasse sobre a loucura que eu estava cometendo, minhas pernas haviam adquirido vida própria e se recusavam a obedecê-la. Abri a porta, ofegante, e tudo que vi foi a rua vazia e o carro de Fe estacionado, exatamente como estava desde que havíamos chegado. Me aproximei da rua, procurando os faróis que eu jurava ter visto, mas não havia absolutamente nada que pudesse ter emitido qualquer tipo de luz por ali. Franzi a testa, começando a ficar assustada de verdade com minha capacidade de imaginação, e entrei em casa, voltando a me sentar no sofá. Ótimo, além de adúltera, eu estava ficando louca.
Mais meia hora de insônia se passou, e eu comemorei sarcasticamente a chegada das três da madrugada, com quase todas as minhas unhas roídas até não poder mais. A ansiedade que havia tomado conta de mim insistia em se intensificar a cada segundo, e por mais que eu me perguntasse o motivo dela, nada me vinha à cabeça. Bom... Pelo menos nada que eu considerasse agradável. E só para me ajudar ainda mais, após minha estranha visão, meus pensamentos não conseguiam se desviar de Rafael, provavelmente por causa da lembrança que os faróis ilusórios ressuscitaram.
E como minha cabeça sempre conseguia tomar os piores caminhos, não se contentou em focalizar suas energias apenas em Rafael, por pior que aquilo já fosse. Como se eu já não estivesse frustrada o bastante por estar pensando nele, uma pergunta subitamente surgiu do emaranhado de pensamentos que se formava dentro dela, alarmando ainda mais meu coração e fazendo com que o estranho suor frio que brotava de minha testa se intensificasse.
Será que ele realmente viria essa noite?
Enquanto meu cérebro processava a complexidade daquela pergunta, eu comecei a piscar mais que o normal, e meus dedos não conseguiam sair do meio de meus cabelos, enterrados entre suas mechas em sinal de desespero. Por que raios eu tinha de ser tão fraca? Por que eu não podia simplesmente me manter calada e guardar minhas fraquezas para mim mesma?
Por que eu tinha que ter perguntado se ele voltaria? Tudo o que fiz foi criar falsas esperanças para ele, de que eu talvez estivesse interessada em repetir a dose da noite anterior! E isso era, definitivamente, tudo que eu não queria!
Ou pelo menos, tudo o que eu fingia desesperadamente não querer.
Naquele momento, eu me dei conta do quão ridícula e imatura eu estava sendo diante daquela situação. Meu corpo e minha mente davam sinais claros de que não pensar em Rafael estava se tornando cada vez mais impossível, mas uma parte de mim, a parte racional, ainda se recusava a dar o braço a torcer, tentando lutar inutilmente contra meus impulsos. Não adiantaria nada continuar repetindo para mim mesma que eu estava bem e que aquilo era apenas uma insônia sem motivo, sendo que eu sabia exatamente a razão de minha ansiedade. Infelizmente, eu precisava aceitar que ainda não tinha forças suficientes para afastar a sombra de Rafael de meus pensamentos, por mais intensas que fossem as minhas tentativas de abafar o estranho poder que ele tinha sobre mim. Era nítido que ele tinha algo que me desarmava completamente, dopando minha consciência e aflorando meus piores instintos.
Soltei todo o ar tensamente preso em meus pulmões, fechando os olhos e deitando minha cabeça no encosto do sofá. Um sorriso sem humor algum se formou em meu rosto, externando minha frustração comigo mesma. Eu estava destinada a ser fraca, pro resto da minha vida. Era como se eu jamais fosse ser capaz de vencer algum obstáculo que surgisse na minha frente, apenas fosse me curvar diante dele e deixá-lo modificar minha vida, fosse para melhor ou para pior.
A fraqueza era meu fardo. E Rafael era a prova viva disso. Ele sabia muito bem que esse era meu ponto fraco, que eu era uma presa fácil comparada ao seu poder de ataque invencível, e como se isso já não fosse suficiente, ainda utilizava todos os seus artifícios para me manter hipnotizada. Abduzida.
Encarei o teto, totalmente inerte, e ao invés do cinza sem graça, o discreto sorriso de Rafael ao ir embora na noite anterior surgiu em meu campo de visão. Teria aquilo sido mesmo uma resposta, ou apenas mais uma de minhas ilusões?
Não... Ele não podia fazer isso comigo. Ele não seria capaz. Eu sabia que ele viria. Ele não teria coragem de me deixar esperando.
Me mantive inconscientemente imersa em pensamentos por um tempo que me pareceu incalculável, e num de meus breves acessos de lucidez, olhei para o relógio: três e meia. Meus pés batucavam contra o piso frio da sala, inquietos assim como minhas mãos, que seguravam a barra da camisola com força. Minha respiração estava totalmente descompassada, denunciando todo o nervosismo que me devorava, e meus olhos percorriam cada centímetro visível da janela, até que, num movimento impensado, se depararam com uma solução para meu problema, que estava ali desde o começo, bem debaixo de meu nariz: o telefone.
Quer saber? Se aquela já era uma batalha decidida, pra que continuar lutando? Foda-se o meu orgulho.
Fiquei de pé num salto, e corri até o aparelho, quase derrubando-o ao tirá-lo da base, tamanha era a tremedeira de minhas mãos. Olhei para os botões, esperançosa, e me lembrei de que, para ligar para ele, precisava de seu número. Pensei por um momento, e logo encontrei a saída: o celular de Felipe.
Larguei o telefone sobre a base de qualquer jeito, correndo desengonçadamente em direção às escadas para pegar o aparelho de Fe. No terceiro degrau, quase escorreguei, e tive que me apoiar em minhas mãos para não dar de cara no chão. Quando faltavam dois degraus para chegar ao primeiro andar, um zumbido se apoderou de meus ouvidos, quebrando o silêncio sepulcral. Paralisei onde estava, virando minha cabeça na direção do som com uma rapidez assustadora. Eu sabia que estava descabelada, com olheiras e pálida, mas agora não havia mais tempo pra me arrumar.
Ele estava aqui.

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