Eu não tenho ... mais é o que eu espero

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Capítulo 33

Meu despertador tocou, anunciando as seis horas da manhã de mais um dia letivo. Até mesmo seu som propositalmente estridente parecia intimidado com a atmosfera densa que me rondava, e como que num gesto de compaixão desmerecida ou até mesmo pena, tocava com menos escândalo que o habitual naquela manhã. O que veio a calhar, já que eu não precisava de nada para me manter acordada.
Meus olhos estavam escancarados desde que me lembrava de ter deitado, fixos agora no dia que amanhecia e refletindo os tímidos raios solares que invadiam meu quarto. Minhas pálpebras ardiam levemente devido às lágrimas que haviam secado ao redor delas, as quais eu não me dei ao trabalho de enxugar. Soltei um suspiro fraco, fechando meus olhos insones por alguns segundos. Apesar do cansaço mental que fazia minha cabeça pesar o triplo do normal, as horas de reflexão haviam ajustado algumas idéias e estabelecido alguns fatos que eu me negava a aceitar há algum tempo. Pela primeira vez desde que tudo acontecera, eu estava sendo totalmente franca e objetiva comigo mesma.
Talvez tudo tivesse acontecido no momento certo. Talvez minhas suspeitas fossem concretas e eu já não amasse mais Fe como antes.
Quer dizer... Se eu o amasse, ainda deveria estar doendo muito, não deveria?
Então por que eu só conseguia sentir um... Vazio? Era como se tivessem colocado uma pedra de gelo dentro do meu peito, porém ela não doía. Ela apenas... Gelava tudo ao seu redor. Entorpecia os órgãos próximos, anestesiava qualquer tipo de dor que eu pudesse sentir, quando na verdade sua existência a deveria estar causando. Tudo ainda estava estranho demais dentro de mim para que eu conseguisse me definir com exatidão, mas uma noite em claro me permitiu enxergar certos pontos em meio ao breu que se instalara em minha mente.
Eu já não o amava mais, mesmo antes de descobrir sobre Jenny. Apesar de meus receios diante dessa constatação, de meu medo de me desprender de algo que fora uma verdade absoluta para mim por tanto tempo, minha ausência de sentimentos em relação a ele agora era uma certeza.
Não era como se eu precisasse de muito esforço para apagar as imagens de Fe com outra mulher de minha mente. Se Rafa não tivesse surgido, eu estaria agonizando naquele momento, sem dúvidas. Mas devido às mudanças drásticas em minha vida, agora eu podia dizer que até aceitava o fato de Fe amar outra mulher. Eu apenas não aceitava a parte de ele ter me enganado a respeito disso.
Eu queria sentir raiva por ter sido enganada, mas não havia nada formigando em minha garganta. Eu queria sentir vontade de chorar só de pensar nele com ela, enquanto eu sonhava com nosso futuro, mas meus olhos simplesmente se mantiveram secos ao visualizarem tal cena. Eu queria sentir alguma coisa... Mas, por mais que eu tentasse, só havia ele.
O vazio.
- Filha? – ouvi a voz baixa de minha mãe chamar da porta, e apenas dirigi meus olhos até seu rosto carinhoso – Como você tá?
Funguei baixo, só então me dando conta de que o despertador ainda tocava, e o desliguei, vendo mamãe caminhar até mim. Ela se sentou ao meu lado na cama, e colocou a mão suavemente sobre minha testa, verificando minha temperatura. Mães e sua eterna proteção desmedida.
- Não sei – murmurei, encarando-a com inexpressividade – Igual, eu acho.
- Tem certeza de que não quer me contar o que aconteceu? – ela perguntou, aflita, acariciando meu rosto, e eu neguei com a cabeça – Por favor, querida... Quem sabe eu possa te ajudar.
- Vai ficar tudo bem, é só uma TPM meio exagerada – recusei, esboçando um sorriso que mais deve ter parecido uma dor de barriga – Eu ando meio pressionada na escola, aí acaba juntando tudo e dá nisso.
- Pressionada como? – mamãe quis saber, mexendo em meus cabelos devagar – Você sabe que eu não exijo que você seja uma aluna exemplar, por mais que você seja...
- Eu sei – a tranqüilizei, desejando mais do que tudo poder desabafar com ela e ter seu apoio, mas o medo da reação contrária me impedia – Eu mesma acabo me pressionando, é coisa minha. É sério, daqui a pouco passa.
Ela soltou um suspiro, olhando para o despertador sobre o criado-mudo, e fez a pergunta que eu mais queria ouvir.
- Quer faltar hoje?
Fingi ponderar sua proposta, encarando os números do despertador digital, e fechei os olhos, assentindo após alguns segundos.
- Por favor, mãe – falei, agradecendo-a mentalmente com fervor – Prometo que vai ser só hoje.
- Tudo bem, filha... O ano letivo já está acabando mesmo – ela sorriu, dando um beijinho em meu rosto – Durma mais um pouco, fique o dia todo jogada no sofá comendo besteiras, depois chame a Bruna se quiser... Relaxe por hoje, tá?
- Obrigada – eu disse, sorrindo fraco pra ela e recebendo uma mordidinha na bochecha.
- De nada, meu amor – ela murmurou, falando de um jeito que me fez sentir uma criança de dois anos, dando um beijo estalado em meu rosto e se afastando logo em seguida – Bom... Eu preciso trabalhar. Qualquer coisa me ligue, está bem?
Assenti, sorrindo e mandando beijo ao vê-la se levantar e deixar o quarto. Suspirei baixo, esfregando o rosto com minhas mãos, e alguns segundos depois, ouvi um barulho estranho sobre o criado-mudo. Olhei na direção do som e vi o visor de meu celular aceso, enquanto ele vibrava sobre a superfície da mesa e uma música começava a se tornar gradativamente audível. Peguei-o sem muito ânimo, e vi que alguém estava me ligando.
- Alô? – murmurei, rouca, e a voz do outro lado da linha fez uma pontada de conforto surgir em meu peito.
- Bom dia – Rafa sorriu, e uma saudadezinha idiota me fez sorrir junto imediatamente – Te acordei?
- Não – respondi, sentindo uma chama se acender dentro de meu peito, porém a pedra de gelo parecia quase imune ao seu calor – Bom dia pra você também. Como você está?
- Me diga você – ele falou, e eu suspirei baixinho – Como estamos?
- Não sei dizer – fui sincera, e minha voz denunciou o vazio em meu interior. Como ele conseguia arrancar tudo de mim com apenas algumas palavras?
- Não gostei muito dessa resposta – ele suspirou, parecendo preocupado – Eu queria muito te ver hoje, mas não queria que você fosse à escola.
- Eu não vou – eu disse, observando a brisa brincar levemente com a cortina, e um milésimo de segundo depois, uma idéia maravilhosa me ocorreu – Você pode vir aqui mais tarde, se quiser.
- Sua mãe vai estar trabalhando? – ele perguntou, certificando-se de que nada poderia dar errado em minha sugestão – Até que horas?
- O turno dela é até as oito hoje – respondi, aprovando a idéia de passar a tarde com ele – Você pode ficar aqui comigo enquanto ela não chega.
- Era tudo que eu queria ouvir – Rafa disse num tom aliviado, e meu sorriso se alargou um pouco – Estarei aí às duas horas, pode ser?
- Claro – concordei, sentindo meu coração bater com um pouquinho mais de força, movido pela ansiedade – Experimente tocar a campainha e entrar pela porta dessa vez.
- Hm, boa sugestão – ele riu, fazendo-me acompanhá-lo, mesmo que baixinho – Bom... Eu preciso me arrumar e ir pro colégio. Te vejo em oito horas.
- Vou contar os segundos – confessei, encarando timidamente meus dedos brincando com a barra do edredom – E por favor... Tome muito cuidado. Não arrume confusão.
- Não vou garantir nada, Bella – ele suspirou, e seu tom voltou a ser sério, assim como meus olhos se fecharam, temendo o que poderia acontecer – Mas eu pensei muito sobre tudo essa noite, e vou me esforçar pra ficar calmo.
- Obrigada... Eu sei que você consegue – agradeci, respirando fundo – Te amo.
- Eu também – Rafa murmurou, e a firmeza em sua voz me deu uma sensação boa – Muito.
Suspirei baixo, hesitando por alguns segundos antes de desligar, e quando o fiz, me afundei ainda mais em minhas cobertas, com meu estômago revirando de ansiedade e medo. A mera idéia de imaginar Rafa e Fe discutindo outra vez me causou calafrios, e meus olhos se fecharam com força ao me lembrar do olhar demoníaco de ambos ao brigarem no dia anterior. Cobri meu rosto com as mãos, lutando para parar as engrenagens enlouquecidas de minha mente por apenas um segundo, e de alguma forma muito imperceptível, dormi. Talvez a noite em claro tivesse finalmente surtido efeito.
Acordei por volta de uma da tarde, devido aos roncos de meu estômago vazio desde a manhã anterior, e decidi me arrastar até a cozinha para resolver aquele problema. Eu não botava muita fé de que fosse conseguir digerir bem qualquer tipo de alimento, mas eu precisava tentar, e agradeci profundamente por encontrar comida congelada no freezer. De comer, relativamente gostoso e prático. Era tudo o que eu queria.
Sentei no sofá com meu prato no colo, com a TV ligada apenas para me tirar do silêncio que imperava na casa. Apesar de estar realmente faminta, comi devagar, com os olhos vagando pela TV, sem exatamente enxergar alguma coisa. Minha cabeça estava pesada pelas poucas horas de sono e muitas de esforço, meus olhos estavam levemente inchados, meu cabelo estava uma zona e eu me sentia totalmente estranha. Uma bagunça, para ser mais precisa.
Estava caminhando até a cozinha para deixar meu prato vazio na pia quando ouvi a campainha tocar. Franzi levemente a testa. Não podia ser Rafa, poucos minutos haviam se passado depois da uma da tarde. Me desfiz da louça e rastejei até a porta, abrindo-a e deixando somente uma fresta para que eu pudesse reconhecer o visitante.
- Bella? – Bruna chamou, inclinando a cabeça levemente para o lado.
- Bru? - murmurei, abrindo a porta normalmente ao me dar conta de quem era – O que você tá fazendo aqui?
- Tem certeza de que não sabe? – ela respondeu, olhando-me com a expressão um pouco triste. Ela sabia.
- O Rafa falou com você? – chutei, e Bruna assentiu com um sorrisinho calmo - O que ele te disse?
- Hm... Posso entrar primeiro? – ela pediu sem jeito, e só então eu percebi que ainda não a havia chamado para dentro.
- Desculpe – falei, dando passagem para que ela entrasse, e nos sentamos no sofá. Assim que nos acomodamos, Bruna começou a explicar.
- Ele me chamou na hora do intervalo, disse que precisava conversar comigo. Eu concordei, já imaginando que fosse algo sobre você, ainda mais vendo que você tinha faltado. Fomos até o laboratório, e bem... Ele me explicou tudo. Desde coisas que eu já sabia até... Os recentes acontecimentos. E eu decidi vir te ver, antes mesmo de ele me pedir pra fazer isso. Eu não podia te deixar sozinha justo agora.
Ela soltou um suspiro baixo ao finalizar sua explicação, e eu abaixei meus olhos dos dela para o chão, sem saber o que pensar da atitude de Rafa. Eu não esperava que ele fosse se preocupar tanto comigo àquele ponto. Sem dúvida, foi um gesto muito gentil de sua parte, e eu não poderia deixar de agradecê-lo mais tarde.
- Obrigada, Bru – foi só o que consegui dizer, olhando-a vagamente – Até que eu estou... Bem.
- Bella, eu te conheço – ela murmurou, segurando uma de minhas mãos entre as suas – Sei que você deve estar se crucificando e se repugnando pelo que aconteceu... Mas eu não posso permitir isso, e sei que o Rafa concorda comigo. É normal que você fique abalada, mas...
- É sério, Bruna – a interrompi, sem querer ouvir discursos repetitivos – Eu estou me culpando sim, não vou negar, afinal, eu errei. Mas eu pensei que fosse ser bem pior. De verdade, eu estou bem. Não... Dói.
- Não? – ela perguntou, delicadamente surpresa, e eu neguei com a cabeça, vendo-a disfarçar um sorriso aliviado – Isso é... Bem, isso é ótimo!
- Você acha? – falei baixo, vendo Bruna franzir a testa – Tudo desmoronou sobre a minha cabeça e eu não consigo sentir nada... Você acha isso ótimo?
- Tudo desmoronou sobre a sua cabeça? – ela repetiu, com a expressão duvidosa – Por que você pensa assim?
- Minha vida está toda de cabeça pra baixo – respondi, encarando-a sem esconder a confusão em meu olhar – Fe descobriu tudo, vai me odiar pra sempre, vai fazer de tudo pra me separar do Rafa e ferrar com a minha vida e você ainda me pergunta por que eu penso assim?
- Deixe que ele tente – ela deu de ombros, olhando-me com uma serenidade que eu invejei – Você e o Rafa são mais fortes do que isso, eu tenho certeza. Eu não acreditava nessa intensidade toda entre vocês, mas hoje, enquanto ele me contava tudo o que aconteceu... Foi como se um outro Vitti tivesse surgido bem diante dos meus olhos. Ele te ama, Bella. E é pra valer.
- Pode parecer esnobe da minha parte, mas eu sei – assenti, esboçando um sorriso ao ouvi-la falar dele daquela maneira – Quanto a ele, eu me sinto muito segura.
- E com razão. Ele não vai se deixar influenciar por nenhum tipo de armadilha que o Fe possa aprontar... Isso foi até uma das coisas que nós citamos enquanto conversávamos hoje – ela continuou, me observando distraidamente – O ponto mais frágil, que ele provavelmente vai querer atacar, é o sigilo da relação de vocês. Na minha opinião, é a única forma que ele tem de afetar vocês dois.
- Eu tenho certeza de que ele vai dedurar o Rafa na diretoria o mais rápido possível – concordei, fechando os olhos por um momento; as conseqüências dos futuros atos de Fe me traziam uma sensação de asfixia – Além de fazê-lo perder o emprego, minha mãe vai ser chamada na escola e vai descobrir tudo da pior maneira.
- Isso é verdade, infelizmente – ela disse, pensativa, inclinando a cabeça levemente para o lado com o olhar vago – O Rafa já não deve ter uma boa moral no histórico da escola, mas pelo que ele me disse hoje, o emprego é a última coisa que o preocupa. E quanto à sua mãe... Bem, eu acho que você deveria abrir o jogo com ela antes que a diretora faça isso por você.
Suspirei profundamente, tentando me imaginar contando tudo para minha mãe. Um dos meus piores pesadelos, sem dúvida. Ela provavelmente acabaria comigo e expulsaria de casa o que sobrasse de mim. Era um beco sem saída.
- Talvez você esteja certa – murmurei, concordando com uma decisão que provavelmente seria uma das mais marcantes da minha vida – Eu só preciso... Me encontrar no meio dessa bagunça pra poder tomar as decisões certas.
- Eu entendo – Bruna sorriu fraco, erguendo seus olhar de minha mão para os meus olhos - Tudo aconteceu muito rápido, você precisa de um tempo para digerir as coisas.
- É... - suspirei, apertando sua mão e devolvendo seu sorriso – Obrigada por se importar comigo.
- Que tipo de amiga eu seria se não me importasse com você? – ela ergueu uma sobrancelha, me abraçando logo em seguida - Vai ficar tudo bem, confie em mim.
- Assim espero – murmurei, sentindo que talvez nem tudo estivesse tão perdido assim. Depois que minha mãe me expulsasse de casa, o que provavelmente aconteceria quando eu contasse tudo a ela, eu poderia passar um tempo morando com Bruna, mesmo que tivesse que arranjar um emprego apenas para bancar meus gastos na casa. Tudo o que me restaria daquele inferno seriam algumas semanas de colégio até que eu me formasse. Um dia, talvez, se eu realmente me esforçasse, minha mãe me perdoasse por tudo o que fiz, e então tudo estaria resolvido.
- Ele me disse que vem passar a tarde com você hoje – Bruna disse ao se afastar, e eu assenti – Não acha que é arriscado?
- Mamãe vai estar trabalhando, e ele vai embora cedo – falei, e ela assentiu, sem enxergar grandes falhas em meu plano – Vai me fazer bem passar um tempo com ele aqui.
- Sabe... Eu acho que ela vai entender – Bru suspirou, reflexiva – Não acho que ela vá te expulsar de casa, muito menos pensar que você é uma vadia, como você tanto teme. Sua mãe é bastante mente aberta e compreensiva, não a subestime.
- Tomara que você esteja certa – falei, olhando-a com incerteza – Seria a solução pra quase todos os meus problemas... O apoio dela me daria muita força.
- Eu vou estar certa, você vai ver – ela sorriu ternamente, confiante – Pensamento positivo, por favor, Isabella.
- É fácil falar – soltei um risinho descrente, vendo-a me olhar com censura – Mas eu vou tentar.
- Isso mesmo – Bruna assentiu, fazendo uma cara mandona engraçada – Agora vai se arrumar, seu bofe vai chegar daqui a pouco e você ainda está um trapo.
- Obrigada pela parte que me toca – ironizei, vendo-a me mandar um beijo falso conforme se levantava e me arrastava para o andar de cima. Fui arremessada para dentro do banheiro, onde tomei um banho rápido, porém revigorante. Escovei os dentes e penteei meus cabelos, e quando cheguei ao quarto, Bruna estava sentada sobre a cama.
- Tomei a liberdade de separar suas roupas – ela sorriu, indicando algumas peças sobre a cama, e eu devolvi o sorriso em forma de agradecimento. Eu não estava com cabeça para escolher roupas naquele dia. Vesti minhas roupas íntimas, um shorts branco e uma blusa cinza larga, que deixava um de meus ombros à mostra, e conseqüentemente, uma alça do sutiã preto. Mal terminei, a campainha tocou.
- Será que é ele? – comentei, checando a hora no relógio ao lado da cama - Ainda são quinze pras duas.
- Melhor pra vocês, quinze minutos a mais – Bruna disse, me seguindo até o andar de baixo. Paramos em frente à porta, e eu respirei fundo antes de abri-la.
- Oi, meninas - ele sorriu de uma maneira agradável.
– Oi, Vitti - Bruna respondeu, simpática, virando-se para mim logo em seguida - Bom... Eu vou deixar vocês ficarem sozinhos agora. Ewan deve estar me esperando para almoçarmos juntos.
- Mande um beijo pra ele – falei, abraçando Bruna rapidamente – E obrigada por ter vindo... Você me ajudou muito.
- Que bom - ela murmurou, apertando-me com força antes de me soltar – Tchau, Rafa. Cuide bem dela, por favor, senão eu acabo com você, entendeu?
- Pode deixar – ele disse sem nem se abater com a ameaça de Bruna e olhando-me com intensidade. Apenas isso bastou para que eu me arrepiasse por inteiro.
- Entra – falei, quando Bruna já havia se distanciado, e ele obedeceu.
- É bem estranho entrar pela porta, sabia? – o ouvi comentar enquanto eu trancava a porta, rindo baixo – Não é tão emocionante.
- Imagino – falei, aproximando-me dele com um sorrisinho divertido. Fechei os olhos ao senti-lo envolver minha cintura com seus braços, inalando seu cheiro de quem havia acabado de sair do banho, e o abracei pelo pescoço sem pressa. Rafa esfregou a ponta de seu nariz no meu devagar, unindo nossas testas e fazendo com que sua respiração quente batesse em meu rosto. Senti meu equilíbrio se prejudicar quando ele beijou o canto de minha boca, e deslizei minhas mãos para seus ombros, aprofundando o beijo com urgência, num claro ato de carência e fragilidade. Ele sorriu após dar passagem à minha língua, e estendeu o beijo por alguns segundos.
- Essa recepção com certeza compensou a entrada não triunfal – Rafa sorriu ao afastar nossos lábios, e eu retribuí, sentindo meu rosto corar de leve – Mas não matou a minha saudade ainda.
- Ah, não? – balbuciei, ainda zonza, vendo-o sorrir ainda mais e cerrar os olhos pra mim – Acha que devíamos fazer de novo?
- E de novo – ele disse, roubando-me um selinho a cada vez que falava – E de novo... E outra vez... E mais uma.
- Pare de abusar de mim, eu estou sensível – fechei os olhos ao senti-lo sugar meu lábio inferior, o que fez com que de repente a sala começasse a girar ao meu redor. Apertei algumas mechas de seus cabelos entre meus dedos, me arrepiando conforme ele dedilhava minhas costas delicadamente, e ele suspirou baixinho contra meus lábios.
- Desculpe... Sua boca me desconcentra – Rafa sussurrou, respirando fundo e afastando seu rosto até uma distância que me permitisse manter meu equilíbrio – Prometo que não vai acontecer de novo.
Levei alguns segundos para restabelecer a firmeza em minhas pernas. Talvez eu estivesse mesmo frágil.
- Vem, vamos nos sentar um pouquinho – falei, entrelaçando nossos dedos e conduzindo-o até o sofá. Acomodei-me, com as pernas flexionadas contra meu peito, e as abracei, vendo-o se sentar ao meu lado e me puxar para seu colo, sem nem se importar com o fato de que eu já estava confortável. Com certeza eu teria o triplo de conforto abraçada a ele, por isso, apenas sorri e deitei minha cabeça em seu ombro, enquanto ele me abraçava pela cintura e passava suas mãos por debaixo de minha camiseta larga.
- Você parece melhor – ele disse baixinho, deslizando as pontas de seus dedos gentilmente por minha pele, e eu assenti devagar – Imaginei que conversar com a Bruna te faria bem.
- Obrigada por ter explicado tudo a ela – murmurei, brincando timidamente com a gola de sua camiseta pólo azul e branca, uma de minhas favoritas – Foi muito sensato da sua parte.
- Era o mínimo que eu poderia fazer – ele suspirou, fazendo com que sua respiração quente batesse em meus cabelos com mais força – A Hamu é uma garota muito legal... Não pensei que ela fosse aceitar tudo tão bem.
Sorri fraco, me sentindo a pessoa mais abençoada do universo por tê-la como amiga. Ela era realmente um anjo. Meus olhos se perderam por alguns segundos, vagando pela mobília da sala, e eu mordi meu lábio inferior, sem conseguir mais segurar a pergunta que ecoava em minha mente.
- Como foi hoje na escola?
Rafa ficou em silêncio por algum tempo, observando algum ponto distante, e eu o encarei, tensa por uma resposta.
- Ele não apareceu – sua voz grave falou, e seus olhos Castanhos continuaram sem fitar os meus, talvez escondendo a raiva que seu timbre já denunciava – Tive que substituí-lo em duas aulas.
Soltei todo o ar que involuntariamente havia prendido em meus pulmões, me sentindo mais tranqüila por não ter existido um contato entre os dois. Eu jamais me perdoaria se um deles perdesse a cabeça e iniciasse uma briga em pleno ambiente de trabalho, ainda mais sem que eu pudesse fazer algo para tentar evitar. Mesmo aprovando a ausência de Fe, uma pequena parte de mim não conseguiu deixar de sentir preocupação e culpa por seu sumiço. Será que ele havia feito alguma loucura?
- Ainda bem – sussurrei, voltando a afundar meu rosto na curva perfumada de seu pescoço – Foi melhor assim.
- Não, não foi – Rafa rosnou, balançando negativamente a cabeça – Ele devia ter sido homem pelo menos uma vez na vida e ter aparecido. Eu o ensinaria a nunca mais agir feito um imbecil, e a cada vez que ele se olhasse no espelho e visse o estrago que minhas mãos causariam em sua arcada dentária, ele se lembraria nitidamente de mim.
- Calma, não fala assim – falei tentando acalmá-lo, acariciando seu peito, e senti suas mãos se fecharem em punhos – Não vamos perder a cabeça, por favor.
- Espere só até toda essa turbulência passar – ele disse, com os músculos tensos e o olhar distante, porém afiado como uma navalha – Ele ainda vai ter muitos pesadelos comigo.
- Rafa, olha pra mim – pedi, desaprovando toda aquela raiva crescendo dentro dele, e virei seu rosto até que seus olhos vingativos fitassem os meus – Se acalma, por favor... Vamos esquecer tudo isso, fingir que ele nunca existiu e virar essa página, está bem?
Ele me encarou por alguns segundos, com a expressão impassível, até que eu lhe dei um selinho demorado e seus músculos começaram a relaxar gradativamente.
- Eu tenho tanta raiva dele... – Rafa soprou, fechando os olhos por um momento e logo depois voltando a me olhar - Por ter te enganado durante todos esses meses, te fazendo de amante, te prendendo a ele, enquanto você podia ter sido minha... Só minha... Isso me envenena.
- Eu sei – assenti, com o rosto muito próximo ao dele, e um sorrisinho desanimado se formou em meu rosto – Eu sei como você se sente, acredite... Sei que é difícil controlar a raiva, mas pense que nós também o machucamos.
- Não foi planejado, Isabella – ele retrucou, adotando um tom de voz menos agressivo – As coisas foram muito rápidas e loucas entre a gente, não foi algo que pudéssemos ter evitado.
- Mesmo assim, Rafa – insisti, desviando meus olhos dos dele para baixo – Nós estamos errados também, e teremos de pagar um certo preço por isso, querendo ou não.
- Nada que ele faça vai tirar você de mim, justo agora que eu te consegui do jeito que eu quero – Rafa afirmou, olhando fundo em meus olhos e segurando meu rosto com as duas mãos – Deixe que ele venha... Eu vou estar esperando.
Olhei fundo em seus olhos sinceros, sentindo meu autocontrole desmoronar, e um sorriso grato se formou em meu rosto. Confesso que por um momento, meus olhos lacrimejaram, porém agora obviamente de felicidade. A cada dia eu me dava mais conta de que Rafa não podia ser de verdade. Em algum momento, eu descobriria que ele era um andróide ou um alienígena. Ou talvez apenas um sonho bom, do qual eu jamais queria acordar.
- Obrigada por não ter desistido de mim – sussurrei, fazendo carinho em seu rosto e vendo-o dar seu típico sorriso enviesado – Se eu não tivesse você, acho que estaria sozinha e completamente perdida agora.
- Eu sabia que um dia você ia me agradecer por ter sido tão insistente – ele piscou, fazendo-me rir um pouco.
- Preciso aprender a não duvidar de você – falei, dando-lhe um beijinho de esquimó e sentindo-o morder meu lábio inferior demoradamente. Ele não desgrudou sua boca da minha, iniciando mais um beijo intenso, e eu acariciei sua nuca, sentindo-o fazer o mesmo enquanto sua outra mão apertava minha cintura.
Incrível como tudo parecia estar perfeito quando ele me beijava daquele jeito. Ele realmente devia ter algum super poder.
Uma música baixa começou a tocar no andar de cima após alguns minutos, e eu demorei para me dar conta de que a fonte do som era meu celular.
- Não vou deixar você atender – Rafa resmungou, com os lábios rentes ao meu, e eu soltei um risinho divertido.
- Deve ser minha mãe – sussurrei, levando minhas mãos até seu peito e me afastando, mesmo que contra a vontade dele – Ela pode ficar preocupada se eu não atender.
Ele bufou, cerrando os olhos para mim, e eu lhe mandei um beijinho enquanto subia até meu quarto. Peguei meu celular, que estava sobre a cama, e olhei rapidamente para o visor.
Franzi a testa, e imediatamente, meu sorriso se esvaiu assim que li o nome de Fe na tela.
Fiquei encarando seu nome no visor, totalmente sem reação, mas apesar de minha hesitação, ele não desistiu e continuou esperando que eu o atendesse. Nada que me surpreendesse, afinal, ele estava morrendo de ódio de mim e deveria estar disposto a tudo para me infernizar. Aguardar alguns segundos para ser atendido não o mataria.
Respirei fundo, me preparando para encarar a situação como ela devia ser encarada: com maturidade. Fechei os olhos por um momento, tomando coragem, e deslizei o slide, atendendo a chamada. Conduzi o aparelho ao ouvido, sentindo minha garganta se fechar, e apenas esperei.
- Isabella? – a voz cortante de Fe rosnou, e eu mordi meu lábio inferior, muito nervosa. Eu precisava dizer algo, mas estava tão assustada que não sabia se conseguiria.
- Sou eu – respondi, abrindo os olhos e sentindo minhas mãos tremerem um pouco de medo; obviamente, não permiti que meu leve temor ficasse explícito em minha voz – O que você quer?
- Me encontre em meu apartamento daqui a uma hora – ele disse, ríspido, e eu arregalei os olhos, assustada – Vamos colocar um ponto final nisso.
Não consegui dizer nada, sentindo meu coração bater muito forte e bombear adrenalina para todos os cantinhos de meu corpo.
Vamos colocar um ponto final nisso. O que exatamente ele queria dizer com aquilo?
Ignorando meu silêncio, Fe aguardou alguns segundos antes de simplesmente desligar. Eu não esperava nenhum tipo de despedida, de qualquer maneira. Mantive o celular próximo de meu ouvido por um tempo, até minha mão cair sobre meu colo num movimento mecânico.
Sim, eu confesso. Eu estava um pouco apavorada.
Com que cara eu desceria as escadas e olharia para Rafa? Será que eu seria capaz de esconder minha insegurança e arrumar uma desculpa para que ele fosse embora antes de eu precisar encontrar Fe?
Não, disse a mim mesma. É melhor que ele saiba, para a minha própria segurança. Seria arriscado demais ir totalmente sozinha até o seu apartamento sem ao menos avisar alguém de meu paradeiro. Eu não conhecia aquele Fe, não podia prever o que ele seria capaz de fazer comigo.
Mas de uma coisa eu sabia. Estava na hora de resolver aquela situação.
Mais uma vez, eu respirei fundo, tentando disfarçar minha expressão perplexa, e me levantei. Caminhei lentamente até as escadas, e desci os degraus no mesmo ritmo, sentindo minhas pernas um tanto bambas.
- Era ela? – Rafa perguntou, porém assim que me aproximei e ele pôde me ver melhor, seu rosto ficou sério – Nossa, você tá pálida... O que aconteceu?
Hesitei por alguns segundos antes de falar. Somente agora eu estava realmente absorvendo o que havia acontecido.
- Era o Fe – respondi, porém não deixei que sua expressão, agora um misto de surpresa e indignação, me desencorajasse – Ele quer que eu vá até o apartamento dele daqui a uma hora.
- O quê? – ele exclamou, revoltado, e eu me mantive imóvel – No apartamento dele? Mas o que ele... Você vai?
- Rafa, você sabe que fugir não é certo – suspirei, olhando-o com seriedade – Eu entendo que ele queira resolver tudo, e concordo que quanto mais rápido isso aconteça, melhor.
- Resolver tudo como, Isabella? – Rafa perguntou, sem entender – Ele vai pedir desculpas por ter te feito de amante por todos esses meses e o que mais? Eu não quero você sozinha com ele naquele apartamento, pode ser perigoso.
- Acha que eu não sei disso? – perguntei, e ele respirou fundo, passando uma mão nervosamente pelos cabelos – Mas eu preciso resolver logo essa situação e terminar com essa novela de uma vez por todas.
Rafa me encarou, parecendo um pouco mais resignado, e se levantou, caminhando até mim devagar. Ele me abraçou apertado, como se quisesse me proteger de alguma coisa, e eu o apertei com a mesma força em meus braços.
- Eu tenho medo de deixar você sozinha com ele – ouvi sua voz murmurar, e suspirei baixo – Tenho medo de que ele perca a cabeça e...
- Eu também tenho – o interrompi, sem querer ouvir o fim de sua frase, erguendo meu rosto até poder ver o dele – Mas eu preciso ter um pouco de coragem, pelo menos uma vez na vida, para fazer o que é certo. Eu quero ajeitar as coisas, Rafa. Tudo está uma bagunça, eu não agüento mais essa situação. Eu vou enfrentar Fe hoje, assim como vou abrir o jogo para minha mãe amanhã. Não quero mais ter que mentir para ela nem para ninguém.
- Você vai contar a ela? – ele perguntou, surpreso, e eu assenti com firmeza – Tem certeza?
- Tenho – assenti, mas preferi voltar a me concentrar no assunto mais urgente – E então... Você pode me levar até o prédio dele hoje?
Rafa me olhou com pesar, numa súplica muda para que eu desistisse de ir, mas eu não me deixei atingir. Mantive minha expressão firme, e após alguns segundos, vendo que eu não cederia, ele apenas respirou fundo, fechando os olhos em tom de derrota.
- Não o deixe encostar um dedo em você – ele disse, resignado e enfurecido ao mesmo tempo – Fale o que tiver pra falar, ouça o que quiser ouvir e saia. Entendeu?
- Ele não vai fazer nada – falei, porém havia uma certa insegurança dentro de mim. Como não ficar insegura diante daquele outro Fe e de todo o seu rancor?
- Como você pode ter certeza? – Rafa questionou, me olhando com o rosto sério, e eu hesitei antes de responder.
- Eu não tenho... Mas é o que eu espero.
Rafa sustentou meu olhar por alguns segundos, e pela primeira vez, eu vi uma dose considerável de medo em suas íris. Mesmo sem poder confirmar minha hipótese, tive certeza de que seus olhos eram uma espécie de reflexo dos meus, igualmente inseguros diante do que nos aguardava.
Lá estava eu novamente... Temendo pelo que nos aconteceria.

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