3. Ninguém vai ficar de fora

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...

- Tem certeza que assim vou conseguir? - Judith perguntou quase chorando.
- Só não consegue se não quiser...
- Manu... Posso fazer uma pergunta?
- Já fez! Mas fala Sasha... O que é?
- Você não se parece com as garotas humildes que já conheci aqui durante todos esses anos. O que aconteceu pra vir pra cá?
Congelei no tempo e espaço. Esse era um assunto que mesmo com a psicanalista que Harper contratou no segundo mês após o acontecido, eu continuava não me sentindo bem em falar no assunto. O fato é que se todos soubessem  o que realmente aconteceu naquela tarde, vão me odiar, então basta a mim o meu próprio ódio por ser como eu era.
- Desculpa se não quiser falar... Mas as vezes desabafar é bom...
- Não há o que desabafar...Meus pais e meu único irmão morreram. Não quero falar sobre isso.
- Tudo bem... Mas fique feliz... Pelo menos você os conheceu e sabia que eles te amavam e você os amava.
- Verdade... Eu não sei nem como eram seus rostos dos meus. - Sasha falou cabisbaixa.
- Sinto muito...
- Não precisa ficar assim... É como as freiras sempre falavam... Deus sabe o que faz.
- Freiras?
- É... Fiquei com elas desde que nasci e só vim pra cá, com oito anos...
Deus sabe o que faz? Mas eu tenho certeza que eu nunca soube o que fazia.
- Podemos deixar os livros pra depois? Está na hora do almoço e a seguir temos aula de jardinagem. - Judith falou.
- Claro...
- Estou faminta.
- Você sempre está faminta Sasha!






...






Me desesperei ao ver a refeição do dia. Era sempre assim quando era algo relacionado a massas e molhos e hoje um pouco pior, nhoque a bolonhesa.
Noutros tempos, eu me acabaria de comer, mas agora não consigo nem olhar. As meninas que sentavam próximo a mim, achavam estranho eu deixar a comida no prato, e olha que eu tentava comer e o sabor era maravilhoso. Apenas não descia.
- Não vai querer, não é mesmo?
- Por mais que eu queira... - falei andando na fila - Eu não consigo.
- Mas é bom.
- Eu sei... - parei olhando para uma das mulheres que servia os pratos - Pode substituir o nhoque por arroz e batatas?
Perguntei na esperança dela atender meu pedido. Mas pra minha decepção, ela colocou duas porções do que eu não queria e proibiu a colega de colocar qualquer outra coisa em meu prato.
A vontade de chorar me veio tão forte, mas respirei fundo e caminhei para a mesa mais distante do refeitório, sentando de costas pra todas as outras mesas.
- Quer trocar comigo? - Judith ofereceu.
- Não se preocupe... Se elas perceberem você corre o risco de ser prejudicada também.
- Não me importo. Não queremos você doente. - ela disse trocando seu prato com o meu.
- Eu também não...
- Valeu meninas... - foi tudo o que disse  durante a refeição e elas respeitaram meu silêncio.
- Bom dia meninas! - a senhora Japsen falou entrando pelo refeitório - Estão animadas para o baile? - todas assentiram e ela continuou - Que bom! Teremos muitas coisas pra fazer até lá, então será muito bom ver todas envolvidas. E Manu... Venha a minha sala assim que terminar seu almoço.
- Se não se importar, já terminei senhora...
- Ainda vejo alimento em seu prato.
- Sim... - era a porção de nhoque - Mas não estou me sentindo bem... E não vou conseguir comer tudo. Me desculpe por isso.
- Então me acompanhe...
A segui até sua sala, e já notei seu olhar preocupado sobre mim.
- Me diga... Qual problema?
- Nenhum...
- Emmanuelle, trabalho aqui há anos. E reconheço uma mentira a quilômetros. Sinto até o cheiro dela. O que está acontecendo? Não vem se alimentando direito faz dias.
- Só não consigo comer nada com molho. Só isso.
- E por que colocaram duas porções de noque só no seu prato?
- Como a senhora sabe disso? - perguntei ao mesmo tempo que ela mostrava um monitor com imagens de diversas áreas da instituição - Eu vi...
- Mas minha colega de quarto trocou comigo...
- Sasha?
- Ela disse que trocaria também, mas foi a Judith.
- Sei que disse que queria tratamento igual ao das outras meninas, mas vou intervir nesse assunto.
- Por favor...
- Emmanuelle... Não posso me dar ao luxo de ter ninguém doente aqui e se for você, será pior ainda e me sentirei uma fracassada.
- Não precisa... Vou evitar jogar comida fora. E evitar ficar doente.
- Vou conversar com ela. Mas na realidade, não foi pra isso que te chamei aqui.
- Fiz algo errado?
- Não! Mas preciso de sua ajuda com algumas meninas.
- Pra que?
- O baile... As meninas não sabem usar maquiagem, e até mesmo salto alto. E um passarinho me contou que você está ajudando a Judith a conseguir andar de salto. Nos ajude com as demais meninas...
- Eu? Mas tem garotas que estão aqui há mais tempo e podem ajudar nisso melhor do que eu.
- Quem? A Ester? Não daria certo. Ela é muito orgulhosa e quer mandar em todos.
- Não tão diferente de mim...
- Você está diferente... E essas meninas precisam de você...
- E é pra começar quando?
- O que acha de hoje após a aula de jardinagem? E pra isso ainda teremos uma surpresa!
- O que é?
- Já disse! Surpresa!
- Tudo bem...
- Agora pode voltar. Passo no pátio antes de começar. Com a surpresa.
- Tudo bem.




...




Nunca pensei que mexer com sementes e terra seria tão relaxante. Não entendo nada, mas a professora ia explicando como preparar a terra passo a passo e eu me recordava de quando meu irmão se sujava todo no jardim de nossa casa correndo atrás dos cachorros por entre as plantas. E mamãe quando via ficava maluca.
- Que sorriso lindo e esse?
- Que?
- Você! Acho que é a primeira vez que te vejo sorrir, sem forçar... Algo Expontâneo!
- Não!
- Pensava em quem? Algum gatinho?
- Em momentos bons... Que não voltam mais...
- O que a senhora Japsen queria com você?
- Pedir que eu ajude  as meninas para o baile.
- Ajudar como?
- Como estou fazendo com a Judith...
- Só assim pra você se integrar com a gente. Não é mesmo?
- Se essa foi a jogada... Deu certo.
- Manu, pode se trocar. Daqui a pouco começa a aula de etiqueta no pátio.
- Então, até amanhã. - me despedi da turma e fui ao banheiro limpar as mãos e depois ao meu quarto. Precisava trocar de roupa e preferi colocar uma calça. Iria ensinar como se equilibrar em saltos altos e se caísse usando saia, seria a imagem do ano e motivo para deboche pela vida inteira.
Quando cheguei ao pátio, já havia algumas garotas ali. A maioria na expectativa. A senhora Japsen me apresentou e ao ao mesmo tempo uma das portas foram abertas e entraram umas pessoas que nunca tinha visto carregando algumas caixas e logo atrás, uma mulher muito sorridente.
- Anne! Que bom revê-la!
- Digo o mesmo Japsen... E nossas meninas como estão?
- Animadas e curiosas. Bom, tomei a liberdade de escalar uma das nossas meninas pra te a ajudar. Manuaa... - ela me chamou.
- Nunca te vi por aqui... Chegou quando?
- Uns vinte dias...
- Que bom querida. Agora me ajude a distribuir isso... - a mulher por nome Anne pediu mostrando as caixas.
- O que é?
- A surpresa que falei. Anne conseguiu todos.
Fiquei surpresa ao ver nas caixas várias outras caixas de sapatos e todos de salto. E cada uma com o respectivo nome das garotas que vivem aqui. Agora seria mais fácil ajudar as meninas.
- Sabe usar saltos?
- Sei sim senhora.
- Ótimo. Isso facilita, pois não posso vir todos os dias e temos muito ainda que preparar para o baile.
- Elas vão ficar tão felizes!
- Elas quem?
- As meninas que vai se despedir esse ano. São pra elas, não são?
- Sim, mas todas irão ter o seu. E ainda nem começamos. Teremos as provas dos vestidos. E todas serão verdadeiras princesas!
- Todas?
- Sim até você!
- Anne é uma das ajudadoras da instituição. Ela sempre nos surpreende.
- E esse ano será inesquecível! Garanto!
- O que está aprontando Anne querida?
- Eu e as demais mulheres da associação e Japsen, vamos marcar uma tarde para nos reunirmos com as garotas para um chá!
- Vamos combinar e providenciar tudo.
Passamos o restante da tarde dividindo os calçados, os quais já haviam tomado as numerações antecipadamente, e como não sabiam de mim, fiquei sem.
Mas isso não me desanimou em ajudar naquela tarde. Sempre tive qualquer calçado que quisesse e eu estava começando a me sentir bem em fazer os outros felizes, mesmo que eu não tivesse o mesmo que elas.
Utilizei os livros, e pedi pra que as meninas andassem com eles em suas cabeças, se equilibrando para não deixá-los cair, pelo máximo de tempo possível. O que causou certo alvoroço, pois todas já queriam experimentar seus saltos.
- Teremos tempo meninas... E uma coisa de cada vez! - Anne falou.
- Quando será o baile?
- Uma semana após o ano novo. Mas antes, vamos nos reunir para uma tarde bem divertida. E esses saltos vão ficar com vocês, assim podem treinar e logo vão estarão andando com eles e equilibrando livros na cabeça!
- Acho que nunca vou conseguir fazer isso!
- Não se preocupe Judith! Você vai conseguir sim!
- Mas a Manu não vai participar?
- Ninguém vai ficar de fora. Só não veio o calçado dela, mas semana que vem estarão aqui.
- Então de momento... Vamos nos preocupar em ajudar as meninas.
- Mas já me passa seu número que eu mesmo providencio seu sapato.
- Tudo bem...

***

Anne fada madrinha, só pode!!!
#SanStyles

Redenção de mim!Onde histórias criam vida. Descubra agora