Implacável

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Podia sentir meus olhos mais do que esbugalhados, minha garganta queimando tanto que parecia realmente que estava pegando fogo. A tortura psicológica e física que se dava em mim era horrível, tenebrosa. O sangue do ferimento superficial de Vee era singelo, era pouco; porém, era o suficiente para me atiçar de tal forma que não sabia por quanto tempo conseguiria conter meu impulso de ir até ela e sugar aquele líquido vermelho escuro que, infelizmente, seria a única coisa que combateria a minha dor.

As palavras dela pairavam ao meu redor, se repetiam em minha cabeça, fazendo-a doer também. Meu peito inchava e desinchava e a cada respiração minha, a cada ar, a cada cheiro enferrujado que entrava em lufadas pelas minhas narinas, me fazia tremer e a salivar. Balancei a cabeça com força, como se isso fosse o suficiente para me clarear a mente. Vee deu mais um passo em minha direção.

-Nora...- sua voz soou preocupada, mas fechei os olhos para não ver seu rosto.

-Espera - pedi, por fim.

Ficamos em silêncio, o único som vindo das nossas respirações irregulares, do coração acelerado e daquele maldito tiquetaque do relógio. Minha vontade era a de jogá-lo contra a parede, mas haviam outras vontades e emoções que me faziam deixar meu plano de 'assassinar' o relógio em segundo plano.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo comigo. Me recostei na porta, escorregando meu corpo frágil e quase sem vida até que minha bunda encostasse no chão frio. O tempo estava passando e eu precisava escolher entre morrer e... morrer de verdade. Podia ouvir meu coração falhando vez ou outra, e isso era muito estranhho. Apoiei minha testa em meus joelhos pontudos e desejei mais uma vez que tivesse mais tempo. Tinha que fazer uma escolha bizarra, quase inacreditável, em menos de 24 horas.

Enquanto meus olhos ardiam com as lágrimas que eu não queria derramar, minha garganta e meu corpo gritavam pelo o sangue de Vee. É indescritível essa sensação, como se cada célula viva em mim implorasse por aquilo, como se fossem crianças mimadas que quando não recebem o que querem fazem birra, e acabam me torturando.

Minha mente girava em círculos, meus sentimentos também. Teria que viver a vida inteira dessa forma? Sofrendo por não querer machucar ninguém, sofrendo mentalmente quando o fizesse sem querer, por impulso (não acredito que vá ser forte o suficiente pra resistir sozinha); sofrendo fisicamente quando tentasse ignorar meus novos instintos, quando tentasse controlar a minha nova eu.

Por outro lado tinha Vee, Patch e...mamãe. Qual desculpa dariam a ela sobre a minha morte? Atropelamento? Talvez inventem que eu era uma drogada, viciada em heroína e cabara morrendo de overdose. Talvez.

Como ela se sentiria?

Nem sequer irá ter uma despedida, porque vou morrer da forma mais ridícula de todas.

Recordei de quando nós ficamos sabendo que papai havia morrido. Parecia que uma parte do meu coração havia sido despedaçada e morrido junto com ele. Mamãe tentou parecer forte, mas ela sofreu tanto ou mais que eu. Passou dias e mais dias se arrastando pela a casa, chorando quando achava que eu não estava vendo ou ouvindo. Doeu pra ela, e imagino que perder uma filha do nada seja uma dor igual, ou pior.

Mas então, não seria melhor eu me transformar em vampira para poupá-la disso?

Eu me esforçaria para ser eu mesma, e quando os anos começassem a avançar e eu não envelhecesse, poderia dizer que tive sorte com a genética. Mas quando não tivesse mais como mentir teria que me despedir, e seria ruim para ambas, mas pelo menos ela saberia que eu estava viva e bem. Talvez uns telefonemas bastassem para aquecer nossos corações quando a saudade chegasse de vez.

Comecei a suar frio e meu corpo inteiro dava tremeliques de minuto em minuto. Meu coração deu uma parada de uns 2 ou 3 segundos e eu abri os olhos num rompante, preocupada de não poder me despedir dos outros ou de beber aquele maldito sangue que me atiçava e me envolvia de um jeito absurdo.

Gostaria de acabar com a dor, e era tecnicamente simples. Beber e me saciar, para depois de algumas horas querer beber novamente, ou morrer. Vee estava parada, os olhos atentos no meu rosto, os olhos cheio de lágrimas. Sua expressão sugeria que estava se sentindo culpada pelo o que estava fazendo comigo, mas não o suficiente para parar.

Meus olhos vagaram para meus pés descalços.

Pensei novamente em minha mãe. Mas se eu acabasse a matando? Patch me contou que os vampiros são muito, muito fortes. E se eu fosse dar um abraço nela e sem querer apertasse demais e acabasse quebrando seus ossos?

E se o desejo de sangue fosse tão forte que eu sugasse seu sangue até a última gota? Isso não era impossível.

E Patch? Bom, Patch era o grande amor da minha vida, e acredito que seja justo ele se livrar de mim. Ele me deu nesses meses o que eu não seria capaz de pedir de alguém durante minha existencia inteira. Ele me deu aquilo que eu nem sabia que queria até então: um cara que me tirasse dos eixos, que fizesse meu coração bater a mil só de pensar em vê-lo. Valeu a pena o ter conhecido, e em troca eu darei a oportunidade de ter uma vida normal (ou quase isso), sem ter que ficar se preocupando com a humana frágil e idiota, que se mete em confusão mesmo sem saber explicar como.

E no final, eu nem seria mais a Nora, seria uma vampira. Durante minha insônia na maca, antes de Vee chegar, acabei me lembrando de Patch na clareira quando me salvou. O desprezo na voz dele ao lidar com os vampiros, na forma como não hesitou nenhum segundo para acabar com a vida de Elena, que tinha sangue ruim segundo ele, e que era vampira.

Pode parecer vaidade, mas eu queria que ele se mantivesse pensando em mim como eu era quando estava saudável. Humana, indefesa e emburrada.

Quase sorri desse pensamento.

Minha escolha estava feita. Antes mamãe se machucar com a minha partida, do que ser morta pela a própria filha.

Patch me entenderia, eu sabia disso.

E, quanto à Vee, explicaria agora.

Voltei meu olhar para Vee novamente e ao mesmo tempo o cheiro me atingiu com uma força inimaginável. Seu corte estava mais profundo, o sangue chegava a pingar no chão e seus lábios estavam comprimidos em uma linha rigída, provavelmente fora doloroso.

Mas não tanto como a dor que sentia agora. Antes eu achava que não tinha como piorar, mas...ah, como eu estava enganada.

-Saía! - Berrei para ela, não me lembrava de ter mandado ordens para o meu corpo ficar de pé, mas eu estava. Também não sabia que tinha forças ainda para ser tão rápida.

Vee fincou o pé no chão e ergueu o rosto, fechando seus olhos.

-Não -falou, mesmo sua voz soando amendontrada.

Grunhi alto.

Uma parte muito pequena me dizia para parar de avançar, mas a maior, que cobria mais de 90 por cento do meu cérebro, me guiava sem meu consentimento até à garota de cabelos loiros. Meus olhos estavam cravados no ferimento, agora profundo, que fazia verter o líquido do qual eu precisava.

Eu queria aquilo.

Eu ansiava. Como um viciado que não consegue resistir á tentação.

Não me lembrava de como havia chegado até ela e nem como minha boca havia sido apertada contra o corte, mas já era tarde demais para sair fora. Eu não pensava em nada, apenas naquele sangue quente, vivo e que fazia meu corpo inteiro se sentir livre, forte e, principalmente, trazer uma mangueira para aplacar o fogo na minha garganta. Aplacar a dor que me consumia de dentro para fora. E era só disso que eu queria saber nesse momento, a única coisa que importava era a sensação que eu estava sentindo naquele instante. Nada mais, nem Patch, amigos ou família.


Entre Suas AsasOnde histórias criam vida. Descubra agora