5- As dores de cabeça de dona Flávia

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Deitada na rede branca de algodão, Lília lia um livro e tomava um suco. Para não ter de ficar segurando o copo, ela deixava-o no chão e tomava o suco por um comprido canudo de plástico. Assim, poderia ler tranquilamente e, de vez em quando, beber um golinho. O livro era "diário de uma paixão" que era o livro preferido de Lília.

Quando chegou ao fim do capítulo, naquela tarde quente de começo de fevereiro, Lília fechou o livro e ficou olhando para um pedaço do céu azul.
- Os gênios não deviam morrer nunca! - disse, estalando os dedos para Mirabel, que, sem esperar o segundo convite, pulou na rede.
Nisso, o telefone tocou. Mais que depressa, Lília endireitou o corpo. Aquela campainha a deixava com os nervos à flor da pele. Na terceira tocada, viu que Alice entrava resmungando na sala.
- Já sabe, hein? - gritou Lília da rede. - se for Marcos César, eu não estou em casa!
Revirando os olhos, a empregada pegou o fone e emitiu um alô contrariado. Sim, era a voz masculina que Lília não queria escutar. Alice deixou que o rapaz falasse por alguns minutos e, depois, arrematou:
- Não, ela não está, não sei onde foi e nem a que horas volta!
Lília pôs a mão na boca para segurar a risada, pois, quando mentia, Alice fazia uma cara muito feia. Segundos depois, carrancuda, a empregada desligava o telefone:
- sujeitinho malcriado, me bateu o telefone na cara!
- Na cara, não: no ouvido, Alice - respondeu Lília.
- viu só como ele é? E, depois disso, você ainda quer que eu namore um cara desses?
- Eu não quero coisa nenhuma! - Alice empinou o nariz. - você é quem sabe de sua vida, não eu! - e voltou para a cozinha.

O relógio da sala continuou tiquetaqueando. Dali a pouco, ouviu-se um ronco de automóvel. Era dona Flávia que entrava com o carro novinho em folha, cinza-pérola, estofamento claro. "Mamãe nasceu para usar coroa!" - pensou Lília, acompanhando o movimento do carro até estacionar. "Por que ela não é tão bonita por dentro como é por fora?"
Em seguida, dona Flávia entrou pelos fundos, passando pelo alpendre onde Lília estava. Elegantíssima em um vestido cor de champanhe, sapatos e bolsa claros, e o penteado impecável. Lília forçou um sorriso:

- Oi, mãe, estava boa a festa?
- Uma droga! Oh, que dor de cabeça.. Lendo?
- É, passando o tempo..
- vou tomar um comprimido e cair na cama - disse dona Flávia, desaparecendo pela porta.
Lília continuou olhando para aquela direção. Por que não conseguia sorrir descontraída para a mãe como sorria para o pai? Era difícil! Entre ela e dona Flávia havia uma barreira. Quando Lília tentava rir franco para ela, tinha medo, sentia-se ridícula. Por que a mãe também não ria largo para a filha? Elas pareciam duas sombras com medo de se cruzarem.
Chateada com aqueles pensamentos, Lília tentou concentrar-se na leitura, mas não conseguiu. Ai, o telefone tocou de novo.
- Eu não vou atender! - gritou Alice, lá da cozinha. - não quero mentir pra mais ninguém!
- Também não atendo Porque não quero falar com ele! - respondeu a garota cruzando os braços.
O telefone continuou tocando, fino, irritante. Até que, abrindo de supetão a porta do banheiro, dona Flávia saiu irritada, pisando forte:
- vocês duas estão surdas? Porque que eu que tenho de atender o telefone? Será que não tenho nem filha nem empregada?
Ergueu o fone, colocou-o no ouvido e, ao reconhecer a voz do outro lado, a expressão serenou. Com os olhos fechados, foi respondendo mais com acenos de cabeça do que com palavras:
- ...sim, ... Sim, amanhã de manhã? Ótimo! Rui vai esperá-la no aeroporto. Não, não é incômodo nenhum, será um grande prazer, claro. Até logo!
Depois de desligar, dona Flávia dirigiu-se até a cozinha.
- Alice! - disse, decidida. - vamos deixar bem claro que nesta casa a empregada é você. Isso significa que eu não quero mais atender telefonemas, entendeu? Alice, porém, não era de escutar sermões. Botando as mãos na cintura, rebateu:
- Pois fique a senhora sabendo que eu não gosto de mentir!
- mentir?
- aquele tal de Marcos César quase derrete essa droga de telefone, tocando de cinco em cinco minutos, e a Lília não quer conversar com ele. Então, eu tenho de mentir, dizendo que ela não está em casa!
Ouvindo aquilo, as têmporas de dona Flávia latejaram ainda mais. Dando meia-volta, foi até o alpendre, onde Lília continuava se balançando na rede.
- Vamos acertar definitivamente um ponto, Lília - disse, enérgica - ou você conversa com Marcos César a respeito desse namoro ou...
- eu já acabei com esse namoro! - declarou a filha, cortando a frase de mãe. - você também já disse isso. Então, que mais quer que eu faça? O Marcos César continua telefonando, telefonando, não tenho mais nada para conversar com ele!
- Os santamaria são gente fina, educada, de tradição. Será que você não entende, menina?
- Entender o quê, mãe? - desafiou Lília, fechando o livro com um estrondo. - Gente fina, educada e de tradição devia saber aceitar um não, que droga!
-Não seja grosseira, Lília!
Lília coçou a cabeça e respirou fundo:

- Mamãe, por favor, não vamos discutir! Você está com dor de cabeça, e você mesma vive repetindo que eu sou a outra dor de cabeça de sua vida. Por favor, entenda: eu não quero mais nada com o Marcos César por mais fino, educado, e importante que ele seja. Já falei isso diretamente, mas ele não quer me entender.
Por alguns momentos, dona Flávia continuou de pé, imóvel. Estava pálida, mordia os lábios, abria e fechava as mãos nervosamente. Depois, levando as mãos à resta, começou a gemer.
- estou mal... Estou me sentindo muito mal. Minha cabeça vai arrebentar...
Lília sabia que era pura chantagem. Quando não conseguia impor sua vontade através da força, dona Flávia sempre apelava para alguma encenação daquele tipo. Quando criança, Lília ficava impressionada e cedia. Mas, com o passar do tempo, tendo compreendido as artimanhas Lília parou de ceder.
- é melhor você deitar-se e descansar um pouco, mamãe - sugeriu a filha, sem levantar-se da rede. - tome um bom analgésico que, à noite, você estará nova em folha. Não se esqueça que hoje à noite tem o aniversário na casa do dr. Matos.
Ao ouvir aquilo, dona Flávia olhou firme para a risadinha da filha. Sim, sim, tinha passado horas no cabeleireiro preparando-se especialmente para a festinha e não podia agora, permitir que uma simples dor de cabeça arruinasse todos os seus planos.
Desapontada pela derrota, dona Flávia virou nos pés e desapareceu enquanto, suspirosa, Lília dava beijos na Mirabel.

A ladeira da saudadeOnde histórias criam vida. Descubra agora