A sombra da realidade

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MEU ANALISTA JÁ MORREU. Antes de ser meu analista, era meu terapeuta e

eu gostava dele. A vista do seu consultório, no primeiro andar do pavilhão de

segurança máxima, induzia à serenidade: árvores, brisa, céu. Muitas vezes, eu

não falava nada. Havia tão pouco silêncio no nosso pavilhão... Eu ficava olhando

para as árvores sem dizer nada, enquanto ele olhava para mim sem dizer nada.

Muito companheiro.

De vez em quando ele dizia alguma coisa. Uma vez, depois de uma noite cheia

de brigas e gritos em nosso pavilhão, adormeci por um instante na poltrona,

diante dele.

— Você quer dormir comigo – gabou-se.

Abri os olhos e olhei para ele. Pálido, precocemente calvo, com bolsas sob os

olhos, não era uma pessoa com quem eu quisesse dormir.

Na maioria das vezes, porém, era um sujeito legal. Ficar sentada ali no seu

consultório, sem ter de me explicar, me tranquilizava.

Ele tinha de estragar tudo. Deu para me perguntar: "Você está pensando em

quê?". Eu nunca sabia o que responder. Minha cabeça estava vazia, do jeito que

eu gostava. "Hoje você parece triste", ele dizia. Ou então: "Hoje você parece

confusa com alguma coisa".

É claro que eu estava triste e confusa. Tinha 18 anos, estávamos na primavera

e eu ali, atrás das grades.

Com o tempo, ele acabou dizendo tanta coisa errada sobre mim que tive de

corrigi-lo, e era isso que ele queria desde o começo. Fiquei irritada por ele ter

conseguido o que queria. Afinal de contas, eu já conhecia meus sentimentos.

Quem não os conhecia era ele.

Seu nome era Melvin. Por isso mesmo eu tinha pena dele.

Muitas vezes, no trajeto entre nosso pavilhão e o pavilhão de segurança

máxima, eu o via chegando de carro ao consultório. Costumava dirigir uma

caminhonete com laterais que imitavam madeira, mas às vezes chegava em um

Buick preto e reluzente, de janelas ovais e teto de vinil. Aí, certo dia, ele passou a

toda por mim em um carro esporte verde e aerodinâmico, que estacionou

cantando os pneus.

Parada do lado de fora do consultório, desandei a rir, pois compreendera uma

coisa a seu respeito, uma coisa engraçada. Mal podia esperar para lhe contar.

— Você tem três carros, não é? – perguntei, assim que entrei no consultório.

Ele fez que sim com a cabeça.

— A caminhonete, o sedã e o carro esporte.

Ele tornou a fazer que sim.

— É a sua psique – afirmei, cheia de animação. — Veja bem: a caminhonete

Garota, interrompidaOnde histórias criam vida. Descubra agora