Mente × cérebro

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NÃO IMPORTA O NOME QUE LHE DAMOS – mente, personalidade, alma –,

gostamos de pensar que possuímos uma coisa maior do que a soma dos nossos

neurônios, uma coisa que nos "anima".

Vai-se descobrindo, porém, que boa parte da mente é, na verdade, cérebro.

Uma lembrança é um processo específico de mudanças celulares em pontos

específicos da cabeça. Um estado de espírito é uma conjunção de

neurotransmissores. Acetilcolina demais, serotonina de menos, e você entra em

depressão.

Sendo assim, o que resta da mente?

Há uma longa distância entre não ter serotonina suficiente e pensar que o

mundo é "sem graça, chato e inútil"; e uma distância ainda maior até escrever

uma peça sobre um homem obcecado por esse pensamento. Isso deixa bastante

lugar para a mente. Algo está interpretando os ruídos da atividade neurológica.

Entretanto, esse intérprete será, necessariamente, metafísico e incorpóreo?

Não será provavelmente certo número – enorme número – de funções cerebrais,

que ocorrem paralelamente? Se toda a rede de ações minúsculas que constituem

um pensamento fosse identificada e mapeada, a "mente" então se tornaria

visível.

O intérprete está convicto de que a mente não pode ser mapeada, nem vista.

"Sua mente sou eu", afirma. "Você não pode me analisar em dendritos e

sinapses."

Não lhe faltam argumentos e razões. "Você está um pouco deprimida, por

causa do trabalho estressante", diz (mas nunca "você está um pouco deprimida

porque seu nível de serotonina baixou").

Às vezes, suas interpretações não são plausíveis. Quando você corta o dedo e

ele grita: "Você vai morrer!", por exemplo. Outras vezes, seus argumentos são

duvidosos. Quando diz, por exemplo, que "25 biscoitos de chocolate seriam um

jantar perfeito".

Muitas vezes, portanto, ele não sabe do que está falando. E quando você

conclui que está errada, quem ou o quê é que chega a essa conclusão? Outro

intérprete, superior?

Por que só dois? Eis o problema desse modelo. Ele é infinito. Cada intérprete

precisaria de um chefe a quem prestar contas.

Alguma coisa nesse modelo, contudo, representa a essência de como

vivenciamos a consciência. Existe o pensar e, além dele, existe o pensar o

pensamento; e essas duas coisas são sentidas de maneiras diferentes. Cada uma

deve refletir aspectos bem diferentes da atividade cerebral.

Acontece que o cérebro conversa consigo mesmo e, enquanto conversa, vai

alterando sua percepção. Para obtermos uma nova versão desse modelo, não de

todo falso, imaginemos que o primeiro intérprete é um correspondente no

Garota, interrompidaOnde histórias criam vida. Descubra agora