Liberdade

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LISA TINHA FUGIDO DE NOVO. Ficamos tristes, pois ela nos dava ânimo. Era engraçada. Lisa! Ainda hoje, não consigo pensar nela sem sorrir.

O pior é que sempre a pegavam e a traziam de volta, toda suja, com o olhar ensandecido de quem enxergou a liberdade. Ela amaldiçoava seus captores, e nem mesmo as veteranas mais irredutíveis conseguiam conter o riso diante dos xingamentos que inventava.

— Boceta de bacalhau!

Ou então, outro dos seus favoritos:

— Seu morcego esquizofrênico!

Geralmente encontravam-na antes do fim do dia. A pé e sem dinheiro, ela não conseguia ir muito longe. Dessa vez, porém, parecia ter dado sorte. No terceiro dia, ouvi alguém na sala das enfermeiras anunciar pelo telefone um aviso de intensificação de busca.

Reconhecer Lisa na certa não seria difícil. Ela raramente comia e nunca dormia, de forma que era magra e amarelada, como costumam ser as pessoas que não comem, e tinha bolsas enormes sob os olhos. Prendia os cabelos grossos, escuros e opacos com uma fivela prateada. Seus dedos eram os mais longos que já vi.

Daquela vez, quando a trouxeram de volta, estavam quase tão furiosos quanto ela. Dois homens fortes a seguravam pelos braços e um terceiro a segurava pelos cabelos, puxando-os, enquanto Lisa arregalava os olhos. Todo mundo se calou, inclusive ela. Enquanto olhávamos, ela foi levada para o fim do corredor. Víamos muitas coisas.

Víamos Cynthia voltar em prantos do eletrochoque, uma vez por semana.

Víamos Polly tremendo de frio, enrolada em lençóis umedecidos com água gelada. Entretanto, uma das piores coisas que vimos foi Lisa saindo da solitária, dois dias depois.

Em primeiro lugar, suas unhas estavam aparadas até o sabugo. Ela tinha unhas muito bonitas, das quais sempre cuidava –, pintava, lixava, dava forma. 

Alegaram que suas unhas eram "objetos cortantes".

Além disso, haviam confiscado seu cinto. Lisa sempre usava um cinto barato, de miçangas, desses que os índios das reservas costumam fabricar. Era um cinto verde, com triângulos vermelhos, e pertencera a seu irmão Jonas, o único membro da família que ainda mantinha contato com ela. A mãe e o pai não a visitavam porque ela era uma sociopata – pelo menos, era o que Lisa dizia.

Confiscaram o cinto para que não se enforcasse com ele.

Não compreendiam que Lisa jamais se enforcaria.

Lisa saiu da solitária e recebeu o cinto de volta. Suas unhas voltaram a crescer, mas ela não voltou. Ficava sentada, assistindo à televisão com aquelas consideradas mais irrecuperáveis.

Lisa nunca fora muito de assistir à televisão. Para as que assistiam, mostrava desprezo. "É tudo uma bosta!", berrava, enfiando a cabeça pela porta da sala de TV. "Vocês já parecem robôs. Desse jeito vão piorar." Às vezes, desligava a TV ou se plantava diante da tela, desafiando alguém a ligá-la de novo. A plateia, porém, era quase toda formada por catatônicas e depressivas que não estavam a fim de se mexer. Passados cinco minutos, ou seja, mais ou menos o tempo que ela conseguia ficar parada, ela saía para fazer outra coisa; e, quando a encarregada da ronda se aproximava, voltava a ligar o aparelho.

Como Lisa não dormia havia dois anos, as enfermeiras desistiram de mandá-la para a cama. Em vez disso, havia uma cadeira só sua no corredor, como a da equipe da noite, onde ficava  sentada,  fazendo as unhas. Sabia preparar um chocolate maravilhoso e, às três da madrugada, preparava um para a equipe da noite e para quem mais estivesse de pé. À noite ela costumava ficar mais calma.

Certa vez eu lhe perguntei:

— Lisa, como é que à noite você não fica andando de um lado para o outro, nem grita?

Garota, interrompidaOnde histórias criam vida. Descubra agora