2-Capítulo

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DOMINGO, 08 DE AGOSTO

Tia Tânia saiu, disse que ia a missa. Todo domingo ela vai rezar. Fala que reza por mim, pela Alice, pelo meu pai. Eu não gosto de missa, me sinto meio sufocada por aquele cheiro de velas, pelas orações, pelos cânticos. Parece tudo tão medieval, tão pouco moderno. Até já tentei ir com a tia, tentei rezar pelo meu pai. Só por ele, que a Alice não merece. Acho que não merece. Sei lá. Mas não deu. Prefiro ficar em casa e rezar por aqui mesmo. Quer dizer, rezar-rezar não, que não consigo decorar oração alguma. Tenho dificuldade enorme pra conseguir guardar na memória qualquer reza. Aí, não faço essas decoradas, tipo Ave Maria ou Pai Nosso. Acabo fazendo as minhas, que, na verdade, são mais conversas com o meu pai, pedidos pra que ele se esforce pra eu poder ouvir o que ele tem pra mim dizer.
Me levanto e ligo pra Bete.
Eu:
-Oi.
Bete:
-Oi, pena que você não veio ontem. Tava bem legal.
Eu:
-Ah, não deu. Tava muito cansada. Tava frio.
Bete:
-O Dani acabou vindo. Até perguntou por ti.
Eu:
-
Bete:
-Você ouviu o que eu disse, Dora?.
Eu, engolindo a surpresa-decepção :
-Ouvi, ouvi.
Bete:
-E?
Eu:
-Ah, Bete, sei lá. Tá, vou perguntar :e quando você disse que eu não ia?
Bete:
- Como é que eu ia dizer, se eu não sabia que você não vinha? Disse que você vinha. Ele esperou, jogou um pouco com a gente. Depois disse que Tava tarde e foi embora. Acho que decepcionado.
Eu:
-Jura?
Bete:
-juro. Cruz de pau, Cruz de ferro.

Rimos as duas. Aí, convido a Bete pra vir aqui em casa, mas ela diz que tem almoço na casa da vó dela e coisa e tal.
-Se der, à tarde passo aí, tá?

Saio caminhando pela casa, Puquerel me segue. Depois que minha tia me deu ele, nunca mais me senti sozinha nessa casa. Apesar da floresta.

Abro a porta da frente. A rua está deserta, como sempre. Minha tia gosta de isolamento, por isso, me disse ela, nós moramos nesse bairro mais afastado, o que, muitas vezes, dificulta que eu me desloque, que o pessoal da escola apareça por aqui. Sempre eu é que acabo indo onde eles estão. Mas confesso que não me agrada muito estar no meio dos meus colegas. Sobretudo se os idiotas-reis estão junto:Dimas e Werne Werne, a dupla mais asquerosa que já encontrei em meus quase quinze anos de vida. Uns chatos. Sempre fazendo gracinhas com quem quer que seja. Ah, que vontade de dizer :cresçam e apareçam, seus abobados.  Mas  acabo ficando  quieta, como todo mundo. Só o Daniel os enfrenta. Só o Daniel. O Daniel.

Ah, se eu soubesse que ele iria a noite na Bete. Ah, se eu soubesse que iria perguntar por mim. Ah, se eu soubesse. Tem coisas que eu sei de mas:sei tudo sobre o meu nascimento e um tanto mais de situações que vivi numa idade que não deveria lembar. Mas lembro. Todavia, de outras coisas sei tão pouco:do que o Daniel sente por mim, do poder que minhas palavras às vezes têm pra cometer o mal.

Um arrepio percorre meu corpo. A mancha em meu braço arde, queima como ferida feita com ferro quente. Fecho a porta, o céu tá cinza. Talvez venha mais e mais chuva. Tomara que não seja uma tormenta igual àquela do dia em que eu nasci. Se chover, aí, com certeza, a mãe da Bete não vai deixá -la vir aqui passar a tarde comigo. E eu preciso falar com a Bete, saber detalhes da pergunta do Daniel. Se ele perguntou com carinho, com curiosidade? Se perguntou como quem finge que nem tá aí, que tá só perguntando por perguntar? Pois, se ele perguntou como quem finge que nem tá aí, como quem tá só perguntando por perguntar, é porque ele tá interessado em mim. Afinal, quando a gente tá afim de alguém e não quer dar bandeira, a gente finge que tá perguntando, mas que nem tá aí pra resposta. Pelo menos, comigo é assim.
Meu coração dispara.

O Daniel perguntou por mim. Quer alegria maior que essa?
Acho que até foi melhor eu não ter ido na Bete. Se eu fosse, o Daniel não iria perguntar por mim e eu não ia saber que ele tinha perguntado por mim, porque ele não precisaria ter perguntado. Ah, que confusão.

Volto pro quarto,abro um livro de poesia. Por vezes, só as palavras do poeta me confortam. Apesar.

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Mostro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Acho que durmo, não sei. Abro os olhos e procuro ouvir ruídos da tia Tânia.
Nada.
O domingo dorme na rua deserta. Ouço novamente, e só agora me dou conta, o ruído do motor de um carro. Parece que parado aqui em frente de casa.
Espio pela janela.
Meu coração dispara.
O carro.
O carro do meu pai. Um carro igual ao do meu pai, o mesmo carro que ele bateu contra o poste e explodiu na noite de temporal (e meu pai dentro)está parado bem em frente ao portão.
Um homem desce dele. Sobre o corpo alto, grande, largo, uma capa negra que quase arrasta no chão. Sinto medo. Sinto desejo de fuga. Sei que aquele que caminha em direção à minha casa nada traz de bom.
Um capuz cobre o rosto da sombra.
Puquerel mia alto, quase rosna, pelo todo eriçado. Ele sente o mesmo que eu. Sente.
E se ligar pra tia Tânia? Procuro o celular, mas antes que possa fazer qualquer movimento, a companhia soa. Um toque, dois, vários. Pulo sobre a cama, encolho as pernas, encolho os braços, encolho os pés, me encolho toda, enquanto Puquerel sai do quarto.
Fico sozinha, coração feito cavalo solto no campo.
Silêncio.
Apenas os miados soam pela casa, vindo sei eu lá de onde.
Chamo:
-Puquerel.
Chamo baixo. Não quero revelar que há alguém em casa. O homem-sombra talvez ainda esteja à espreita.

A Filha das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora