SEGUNDA, 16 DE AGOSTO
Desperto com a sensação de alguém me observando e o medo de abrir os olhos me invade. Sei que há uma pessoa (pessoa?) aqui, bem próxima à cama e eu estou a apenas um toque, distância pouca. Penso em Puquerel e o desejo de que ele estivesse aqui, agora, perto de mim, pronto a me proteger, é grande. Sou bruxa, sou, dizem que sou. E, se sou, tenho que ser capaz de saber se quem me observa é do bem ou é risco. Me concentro. Tento ver com os olhos fechados. Vejo. Primeiro uma luz meio densa, parece nevoeiro, uma mulher envolta em brumas. Depois, a névoa vai se dissipando e vejo o rosto bondoso, triste, creio que meio desolado, de tia Tânia.
Abro os olhos.
Ela sorri.
-Bom dia, minha menina.
Eu não respondo. Sei que ela de nada tem culpa, mas também sei do lado de quem ela está. E ela- que esqueço que é bruxa como eu, aliás, mais bruxa que eu, já que apenas agora começo a descobrir minha essência, meu poder- parece ler meu pensamento. Tua mãe só quis te proteger, Dora. Ela tem sido sofrimento esse tempo todo. Mas, se ficasse próxima, o risco seria grande.
Saio da cama, vou para o banheiro. A água quente sobre o meu corpo de dá uma sensação de abandono. Quem dera eu pudesse esquecer tudo: os sonhos, a morte de meu pai, a Alice e seu abandono, Daniel, Irene, os Sete Nomes, o desaparecimento de Puquerel.
Esquecer também as tantas revelações que recebi como presente de aniversário.
Mas não posso.
Não quero.
Estendo a mão para a toalha e tia Tânia a entrega para mim.
Agradeço. E aí, sei lá por que, me sinto mais leve pra dizer, mais uma vez, o que penso sobre Alice. Tia Tânia a defende novamente.
Sorrio.
-Parece que Alice tem mesmo uma legião de defensores.
Primeiro, a Irene, agora você. Parece que bruxas são seres bem unidos, não?
-Eu entendo seus sentimentos, minha menina, mas.
- Não tem mais, tia. Aliás, acho que a Alice sempre foi um mas na minha vida.
Uma oração subordinada adversativa. Aquela que institui uma oposição, um contraste. É isso: Alice é uma conjunção subordinada: porém, contudo, todavia, entretanto. E eu querendo que ela fosse uma oração aditiva, que somasse alguma coisa na minha vida. Nada.
Me visto, pego uma maçã da fruteira, ponho a mochila nas costas e saio para a rua. Sei que, por detrás da cortina, minha tia me espiona. E sofre. Quero retornar, dar-lhe um abraço daqueles bem apertados, mas não posso.
Não posso.
Não.
Não vou para o colégio. Acho que ainda não tenho forças para olhar dentro dos olhos do tal vigilante. Volto para casa, mas entro pelos fundos. Observo a floresta disfarçada de bosque. Entro nela. Vou ao encontro do meu gato, do meu espírito protetor ou de seja lá quem for o Puquerel. O que sei, e isso agora me basta, é que perto dele me sinto mais segura.
Aqui dentro, mergulhada nas sombras das árvores, é mais escuro. E mais frio. Um frio que, na verdade, não sei se entra de fora em mim ou se brota do meu interior. Caminho firme. Vou ao encontro do casebre.
E, de repente, sinto o chão abrir-se sob meu pés. Desabo, as mãos viram garras e tentam impedir que meu corpo mergulhr no buraco onde labaredas de fogo ardem. Grito. Peço socorro. Chamo por Puquerel, por meu pai, pela tia Tânia.
Uma risada ecoa sobre mim.
Uma mão se estende e eu seguro: única salvação.
Sou erguida, meu corpo é arrastado até a base de uma grande árvore. O suor escorre por meu rosto, a marca das bruxas arde em meu braço, lateja, queima. O buraco desaparece, assim como as chamas que por pouco não me consumiram.
-Essa foi quase, hein?- diz meu salvador. Ergo os olhos apenas para confirmar o que já sei: Daniel. E ele me olha com carinho, sorri. - Você está, literalmente, brincando com fogo, Dora.
E fica ali, sentado, parado diante de mim, apenas a me olhar. Não sei quanto tempo ficamos assim, os dois, meio apatetados, nos olhando, talvez sem saber direito o que pensar, o que dizer.
-Você não usou a correntinha com o D.
Balanço a cabeça em negação, puxo mru corpo de encontro ao tronco da árvore. Quero proteção.
Ele segue falando como se o que me diz seja a coisa mais natural do mundo.
-O corpo de uma bruxa é mortal, você sabia? A alma não. Para acabar de vez com a alma de uma bruxa, quer ela seja maquiada ou não, somente através do fogo. Ou, então, da prisão sele no fundo de um rio. As águas correntes impedem que a alma fique livre.
-O buraco queria meu fim?-pergunto.
Ele ri. Os dentes muito brancos convidam para beijos, para perdição. Eu sei.
-Não, o buraco não. Ele Não tem vontades. Quem quer o seu fim é Ele, o Mestre.
-O Demônio?- pergunto novamente.
-Ele.
Breve silêncio e Daniel diz que tentou me salvar. Não naquele momento em que estendeu a mão para me tirar do abismo de fogo, mas quando tentou aproximação para me revelar tudo sobre mim antes que minha mãe o fizesse. Se você tivesse sabido através de mim, não estaria vivendo nenhum drama. Não estaria sendo usada pelas bruxas para fazer aquilo que não deve ser feito. Não deve ser feito, você me entende, Dora? Toda a bruxa que errou pagou feio por seu erro. A própria Alice. E bruxas, pelo menos a maioria delas, não são confiáveis. Elas mudam de lado de acordo com seus interesses. Cuidado, Dora.
-Se você tivesse me falado antes?
-Se eu tivesse falado antes, você seria uma bruxa sem consciência do passado. Seria parte do grupo do qual nunca deveria ter sido apartada. Seria serva fiel do mestre, como são as bruxas que cumprem sua sina. Ele é senhor, ele governa, ele manda.
Dora o observa: sua voz rouca, as palavras de revelação ( cada vez mais aquele estranho mundo se mostra a ela), o sorriso, até mesmo as pequenas rugas nos cantos dos olhos, são profunda atração. E repulsa. Ela sabe que Daniel a atrai, ela deseja seu beijo, mas não pode. Sabe que não pode. Irene disse. E, naquele momento, ela confia mais em Irene do que nele. Mas o que porém, não pode.
-Me entrega aquilo que você retirou do casebre.
O encanto se dissipa.
-Não- respondo.
-Você está comprando uma briga terrível. Você não tem forças para cambatê-lo. Irene está usando você, el quer ser a brixta.
-O que a Irene quer não me interessa. Só me interessa o que eu quero.
Daniel sacode a cabeça, parece desolado. Me olha com olhos de desamparo. Olhod que se incedeiam, e o corpo belo vai aos poucos se esfumaçado. Uma sombra ele e3 agora. Uma longa capa cobre o corpo esfumaçado. E a voz é quase grunhido.
-Me entrega.
Eu me levanto. Digo firme:
-Não.
E corro. Corro como nunca talvez tenha corrido em minha vida. Os galhos dos arbustos batem em meu corpo. Sinto, sei, que o vigilante me caça. Mas não paro, não me volto, apenas corro, corro, corro.
Ouço um miado. Um miado longo, forte (Puquerel?). Porém não paro, sei que tenho que sair da floresta. Aqui, o território é Dele, aqui Ele é mais forte. Chamo meu pai, e corro. Chamo Irene, e corro.
Até que.
Até que a luz do dia friorento desta segunda-feira me acolhe. Olho para trás, o bosque finge uma paz que não consigo mais ver nele.Irene:
-Tu tem te arriscado demais, Dora. Não é certo.
Eu:
- Fui atrás do Puquerel.
Irene:
-E achou-o. O miado na floresta era ele.
Eu:
-jura?Ele está bem?
Irene:
-A vingança do Senhor foi jogada sobre ele.
Olho para Irene e entendo. Ela nada mais precisa me dizer para que eu entenda que mru gato não poderá mais me ajudar. Estou sozinha. Acho.
E o desejo de enfiar a adaga de mirra no buraco que se abriga no peito do Demo se torna maior ainda.
-A hora está chegando, Dora. Paciência.Eu e Irene caminhamos pelo centro da cidade. As bruxas já sabem de tua entrada na floresta. Estão confusas. Estão divididas, ela me diz. Depois fala que estaríamos mais seguras se imersas no burburinho dos passantes.
Mas o dia é findo.
E o lugar mais seguro para mim ainda é minha casa, apesar da proximidade com a floresta. Minha menina, onde você está? A pergunta de tia Tânia grita dentro de min. Mentalizo uma resposta: Estou bem. Daqui a pouco estou em casa. Me despeço de Irene e entro na lotação. Te cuida, ouço o pedido de minha tia. sorrio. Certo
O homem alto, muito alto, quase dois metros de altura para em minha frente. Tem os olhos muito azuis. Vivos. Fortes. As sobrancelhas grossas, peludas, marcam o rosto moreno, coberto de uma barba arruivada. Ele não precisa se apresentar. Já sei, logo que vejo, quem é: o Próprio.
-Dora.
Eu nada falo. Ele ri um riso superior. É do tipo de gente que se acha melhor que os outros, percebo logo. Gente? Eu disse gente?
-Eu vim buscar o que você surrupiou da floresta.
-Não sei quem você é, nem sei do que está falando- minto. Tento ganhar tempo. Lá no fundo da rua, a segurança da minha casa.
O Sete Nomes expressa certo desagrado com o que digo.
-Esperta como a mãe. A fruta caiu perto do pé.
-Eu não tenho mãe - falo e já me arrependo. Não posso ficar no meio da rua dialogando com o Demônio. Aliás, nem acredito que isso possa estar ocorrendo. Tudo um sonho, como o da Alice após retornar do País das Maravilhas. Se fosse assim, bastaria acordar. Mas não.
-Deveria não ter mesmo. Aí estaria livre desse desejo que não te levará a nada. Mas tem: a Alice. Na verdade, Dora, pai é que você não tem. E sabe por quê? Sabe? Conhece o culpado de o carro dele bater contra o poste bem no dia do seu nascimento? O fogo queimou tudo: o carro, o homem que dirigia o carro, o homem que era seu pai. Você sabe disso tudo, não?
Nada digo. E se a adaga não estivesse protegida em meu quarto, guardada pelas cinzas de ervas e alho que tia Tânia põe em frente à porta de entrada, eu juro que pularia sobre Ele e cravaria, sem piedade alguma, a adaga de mirra naquele peito vazio de qualquer piedade.
Ele segue. Parece querer me atiçar contra si. Parece querer que a raiva cresçaem mim.
-Alice errou ao tentar ser outra. Errou ao pensar que poderia abandonar sua sina. Ela era a Preferida, a Escolhida. Virou a Errada. E gerou para si e para sua prole o banimento. Mas há saída, Dora. Basta trazer até mim o que é meu: a adaga.
Nojento, eu penso. Ser odioso. Desgraçado. Matou meu pai, seu infeliz. Não vou entregar porcaria nenhuma. Não vou. E se Ele a quer, é porque a adaga é mesmo importante, é mesmo poderosa. E, se me pede, é porque não tem o poder para pegá-la onde ela está. Ele precisa de mim e isso me faz sentir forte.
-Não sei do que você está falando, eu já disse.
O riso Dele vira som rascante, como se brotasse do vazio imenso que deve ser seu peito. O rosto avermelha-se, deixa que eu perceba toda sua feiura, quer me amedrontar. E consegue. Mas eu finjo que não.
Meu coração descompassa, porém fico impassível.
Minhas pernas tremem, mas não as movo.
Meus olhos ardem, todavia retenho as lágrimas e miro aquele olhar demoníaco.
Então.
Então os passos atrás de mim fazem com que o Mal suma, apenas um forte cheiro de enxofre empesteia o ar.
-Dora.
Volto-me os olhares bondosos de Bete e de Tito possibilitam que o choro exploda em meu peito. Corro ao encontro deles, abraço-os com força, e choro. Choro muito. Choro tudo o que guardei de dor nesses quinze anos de vida.
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A Filha das Sombras
RandomEstas estranhas mulheres que têm poderes sobre a natureza, que são capazes de gerar vida e morte, senhoras dos feitiços, seres capazes de voar sobre vassouras e de se transformar em pássaros negros são as bruxas. Diante de uma delas, só podemos mes...