4-Capítulo

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SEGUNDA, 09 DE AGOSTO

Há muito tempo não dormia assim:tranquila, sonho nenhum a perturbar meu descanso. Tudo tão em paz que até eu duvido. Pela fresta da janela, vejo que ainda é noite lá fora. Talvez chova, não sei. Um barulhinho leve de água caindo sobre as árvores da floresta da tia Tânia chega aos meu ouvidos. Puquerel se espreguiça.
Sorrio. Sinto uma leveza nunca antes sentida nesses quase quinze anos de vida. Coisa estranha.
Quando tia Tânia abre a porta, já estou de pé.
-Oi, minha menina (ela adora me chamar assim), caiu da cama hoje?
-Não, tia. É que fazia tempo que eu não tinha uma noite tão tranquila.
Ela sorri também. Me abraça e seus abraços me enche de coisas boas. Acho que tia Tânia foi a única coisa boa que a Alice colocou em minha vida. Talvez, se eu vivesse ao lado dela (ela, a Alice, a minha mãe ), eu não tivesse o carinho que tenho. Alice é gelada. Assim como esse dia de inverno.
-Está chovendo? -pergunto.
Tia Tânia diz que não. Ela é que acordou cedo e resolveu regar um pouco o Jardim e o pomar.
Ela chama de pomar o que eu chamo de floresta.
-Vem, o café tá na mesa.
- já vou, só deixa eu terminar de me arrumar.

Minha tia sai e eu a acompanho com os olhos. Há algo nela que não consigo alcançar, há algum segredo que a liga à minha mãe, isso eu sei. Porém, não sei direito o que é esse isso, afinal. Parece que elas têm uma ligação que vai além de mim, além de ela ser uma espécie Dr tutora, de substituta da Alice em minha vida. Tia Tânia, apesar de ir à missa todo domingo, bem cedo (vai à primeira missa, num ritual que se repete, se repete, todos os domingos ), é supersticiosa. Ao deitar, por exemplo, coloca sempre diante da porta da rua, um prato com cinzas. Cinzas de ervas que ela colhe da floresta (ou do pomar, sei lá ). Cinzas que ela diz protegerem nossa casa de todo mal.
Acho isso meio exótico, diferente. Mas gosto de ver que ela sempre se preocupa com minha proteção. E me vem à mente a sombra que vi descendo do carro do meu pai ontem. Lembro o arrepio que percorreu minha espinha, o medo de sei lá o quê. E tudo na verdade apenas brincadeira da minha imaginação. Não tinha carro,não tinha sombra, não tinha nada. Apenas o Daniel.
Tia Tânia me chama de novo. Gosto muito dela. Gosto que me chame para o café. Gosto que cuide de mim.
Nas festas da escola, nas celebrações do dia das mães, em tudo sempre foi tia Tânia que fez o papel de substituta. Por vezes, quando eu tinha que fazer algum cartão especial para alguma celebração, nem pensava mais na Alice. Pensava logo na tia Tânia. Acho que ela é mesmo, de verdade, a minha verdadeira mãe.
Abro a janela. Olho o pomar de tia Tânia. Essas coisas estranhas que me acontecem, no início, até me assombravam. Hoje não mais.
Fico achando que os outros não veem o mesmo que eu. Acho que cada pessoa vê o mundo de uma forma diferente, afinal os olhos de um Jamais estarão no mesmo lugar dos olhos de qualquer outra pessoa. Minha tia vê um pomar; eu vejo uma floresta.
Grande, escura, densa.
Nunca ousei entrar nela. Seus ruídos me assustam.
A tia não. Ela entra e retorna de lá com frutas dos mais variados tipos em sua cesta. Frutas saborosas, frutas que independente de época. Não interessa se frio ou calor, tia Tânia traz da floresta escura quaisquer e todos os tipos de fruta. Basta eu desejar comer morangos, ela colhe morangos. Se eu quiser bergamotas, ou abacate, ou até mesmo abacaxi ou manga, não interessa em que época do ano a gente esteja. Minha tia traz.
Estranho. Sei lá. Parece coisa de feitiçaria.
Mas eu já deixei de estranhar o estranho da minha vida. Já nasci estranha :pai morto na noite do meu nascimento, mãe me entregando pra tia, o pomar virando floresta em meus olhos, o carro do meu pai parado na frente de nossa casa, o homem-sombra. E o tanto de coisas que acontecem em torno de mim e que eu não entendo.
-Vem, minha menina. Você vai se atrasar -a voz de tia Tânia grita da cozinha. Prendo os cabelos negros num rabo malfeito. Vou ao encontro dela. Puquerel me segue.
Teve aquela vez, lembro agora, na prova de História. O sor Ricardo lá na frente, com aquele olhar de meter medo, e eu olhando as questões e não fazendo a menor ideia do que ele estava perguntado. Tava com uma bruta dor de cabeça que não me deixava lembrar de nada do que havia aprendido. E eu sabia. Sabia que sabia, mas nada vinha. Tudo embaralhava. Desandei a escrever, então. Escrevi qualquer coisa apenas para não deixar a prova em branco.
De repente, sei lá, vi as palavras dançando na prova. Elas caminhavam pra lá e pra cá, se moviam, trocavam de lugar e formavam novas e outras palavras. Parecia coisa mágica, coisa de bruxaria, sei lá.
O fato é que na semana seguinte, quando o sor entregou a prova, eu tinha gabaritado. Dez, tinha tirado dez. Contei pra Bete, mas ela disse que é óbvio que eu mesma tinha escrito tudo. Apenas a dor de cabeça tinha escrito tudo. Apenas a dor de cabeça tinha alterado o meu juízo. Foi isso, ora. Que mais podia? Ela me perguntou. Sei lá, Bete. Sei lá. Pra tia Tânia, nada falei pra quê? Vai ver era aquilo mesmo que a Bete tinha dito. Dor de cabeça. A dor me tirou um pouco o juízo.
Só isso.
Mais nada.
Até tentei me convencer daquela verdade, mas eu sabia (ah, se sabia ). Sabia que aquela letra não era minha, imitava a minha, mas não era a minha. O traçado do M e o do T não eram meus. Não eram
E depois.
Chego à cozinha. Bebo um suco, como um pedaço de bolo. Após, um beijo apertado na tia, mochila nas costas, saio pro frio de agosto. O vento da manhã bate em meu rosto e me faz arrepiar.
Olho para a floresta, ao lado da casa, e parece que uma sombra se esconde atrás de uma árvore. O homem-sombra? Bobagem. Fico imaginando coisas. Sempre e sempre.
Puquerel corre até mim, se esfrega em minhas pernas. Quando caminho até a esquina, ele me acompanha, coisas que nunca faz, e só retorna para casa depois que eu subo na van.
Sexta, faço quinze anos. Não tenho mais idade pra ter medo de bobagens. Uma sombra a me espiar? Sei. Mais uma das tantas besteiras que invento pra mim mesma.
Às vezes, fico pensando que ir a uma psicóloga não faria mal algum. A Penny Lane disse que, quando os pais dela se separaram, ela acabou indo a uma. E que isso a ajudou muito. Mas não imagino falando de mim, de minhas angústias, de meus medos, de meus sonhos, da floresta, da prova, com alguém que não seja eu mesma. Pra Bete ainda falo algumas coisinhas, mas nada de mais terrível.
Eu disse terrível? É, disse.
A van segue. Daqui a pouco, a escola, as aulas, os chatos do Dimas e do Werner Werner, o lindo-mais-lindo do Daniel. Ir à aula segunda-feira até que não é tão ruim assim. O Daniel vale a pena.
Até amanhã, ele disse ontem, sorrindo o sorriso tão dele. Não há outro igual. Não
Sorriso único. E que eu amo.

Cruzo o portão do Colégio. Meus olhos procuram o sorriso do Daniel, mas não o localizam. Vejo a Irene e a Penny lane numa das mesas da cantina. O Dimas e o Werner Werner escorados na parede da porta de entrada do prédio a dizerem bobagens a quem passa. O Werner Werner, agora, quando uma garota passa, segura seu rabo de cavalo. Ela se esquiva, baixa a cabeça, ele ri, olha para o Dimas como a buscar aprovação para seu gesto. O idiota do amigo dele rir também.
Ouço Passos atrás de mim, meu coração acelera, será? Porém, antes que me volte, emoção quase saindo pela boca, ouço um oi e meu coração se acalma. Voz não é rouca, o perfume não é o dele.
Tito me olha com alegria. Diz que a noite na casa da Bete estava bem legal. Que ele e a Penny Lane ganharam de lavada da Bete e da Irene no imagem e Ação.
-Se você estivesse lá, poderia ter feito dupla com o Daniel. Ou comigo
-ele fala e sorri.
Eu não digo nada. Mais uma vez percebo a chance que perdi de estar do lado dele. E me vem a lembrança do seu sorriso lá na porta de casa. Foi lá apenas pra saber se eu estava bem.
-Eu ia te ligar pra saber se você tava bem, mas aí -diz Tito.
Não escuto mais o que ele fala. Só tenho olhos e ouvidos para o Daniel, que acaba de cruzar o portão. Ele é seu andar de quem sabe o que quer da vida. Andar de quem caminha, porque sabe que seus passos o conduzem para onde ele quer. Andar de quem anda. De fato. E seu andar se dirige para onde estou. E sinto as penas fraquejaren. Puxo um assunto qualquer com o Tito, falo sei lá O quê, falo como quem fala, mas não sabe o porquê fala.
Meu amigo percebe. Tanto que se volta e seus olhos batem nos olhos do Daniel.
-Ah-diz ele-entendo.
E se afasta.
E eu fico temendo que o Daniel venha (sei lá por que esse medo, sei lá de onde vem).
E, sem saber direito qual o motivo que me leva a fazer o que faço, chamo pelo Tito e corro atrás dele.

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