capítulo 13

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SÁBADO, 14 DE AGOSTO

   Sobre minha cômoda, a corrente com a letra D. Sobre a minha cama,eu e as lembranças do ontem. Bela festa de quinze anos.
   A noite foi de pouco sono. Fechava os olhos e o tudo vivido impedia meu mergulho nos sonhos. Ficava querendo dormir, sabia que só assim poderia encontrar meu pai e dizer a ele que eu já sei a verdade sobre sua morte. O Demo, o Mal, que, graças  à atitude de Alice,  resolveu se vingar e destruir o meu pai. O meu pai. O meu.
   Ah, que vontade de levantar da cama eu senti. Que vontade de invadir o quarto da tia Tânia, onde eu sabia que Alice dormia ( Se é que conseguia dormir depois de tudo que vivemos no dia dos meus quinze), e dizer a ela o quanto eu a odeio, o quanto a menosprezo por tudo o que ela me causou.
   Sinto a falta de Puquerel. Não  o vejo como o tal do espírito  protetor que Alice disse que ele é,  ou era, não sei. Preciso voltar à  floresta, preciso  recuperar o meu gato, o meu amigo. Saudades de seu peso aquecendo meus pés nessa manhã fria de inverno.
   É sábado.
   Hoje não tem aula.
   Hoje não vou encontrar o Daniel, embora queira. E não queira. Sou como Alice ( e ela é que me legou essa sina), uma bruxa. Alguém com poderes. Sorrio. Alguém  com poderes.  Ter poder deve ser bom.
   Deve.
   Penso na chuva sobre a Jeanine,  penso na prova de história. Fui eu. Agora eu sei que fui eu. Só pode ter sido eu. Uma bruxa.
   Daniel  seguirá interessado em mim quando souber da verdade? Claro que não.  Ou sim, sei lá. Meu pai não amou  aquela? Então. Mas padeceu por isso. Morreu queimado. Não quero que Daniel morra queimado. Não quero que ele morra. A voz rouca, A barba apontando no rosto moreno. Os olhos bem pretos, o cabelo ondulado. Daniel  é lindo, é o meu lindo. Não merece a morte. Nem meu pai merecia. Alice sim, essa poderia ter desaparecido da minha vida no dia do meu nascimento.  Ao invés do meu pai, ela.  E eu livre, viveria feliz,  sem conhecer minha verdadeira origem.
   Um leve toque de dedos na porta de meu quarto. Não digo que entrem, embora saiba que as duas estão ali, meio apatetadas,  meio confusas, sem saber se entram ou não.  Mas, se são bruxas como eu, e sei que são,  sabem que estou acordada,  sabem que miro a porta esperando que entrem, sabem que quero que elas entrem, que tenho curiosidade para saber o que elas têm a me dizer.
   E a porta se abre.
   E elas entram.
   Tia Tânia sorri um sorriso meio bobo. Seus olhos encontram os meus e sei que ela tem tristeza, decepção, raiva. Mas não digo nada.
   - Minha menina- Ela sussurra.
   Sigo em silêncio. Meu olhar agora está fixo no rosto de Alice, onde leio os sinais da noite  mal-dormida.
   -Dora- diz Alice e fico feliz que ela não me chame de filha. -Sei como você se sente.
   - Não, Alice, não sabe. Não pode saber.
   - Eu não queria que fosse assim. A sua entrada na floresta precipitou tudo. Ele soube da sua existência e agora nada mais há a fazer, senão lutar contra a sua força. Mas eu me sinto fraca, Dora. Fraca.- alice se aproxima da cama, mas meu olhar a impede que me toque, que ouse fazer o carinho que eu sei que pretende. Para perto  da cama. Tia Tânia  segue escorada na porta, em silêncio.
   - Você me abandonou desde que nasci.
  - Ah,Dora, foi preciso. Eu tinho  medo que Ele a descobrisse.
   - Não me interessa. O que eu sei é que você nunca esteve presente, nunca. Uma vez por ano. Uma vez por ano apenas é você  acredita  que fazia sua obrigação de mãe.  É isso?
   Alice põe a mão sobre os lábios.  Contém o choro, acho. Seus olhos enchem-se de lágrimas. Lágrimas de dor ou de fingimento?
   A voz suave de Tia Tânia  defende Alice,  diz que não havia outro caminho,  diz que eu não fui abandonada, que ela sempre me cuidou, sempre me tratou com carinho.
   - E sempre mentiu pra mim. Nunca me disse a verdade.
   Elas calam. Talvez entendam ( Ou tentem entender) a minha dor, a minha revolta. Então,  eu contra-atraco, digo que o que elas fizeram não tem explicação,  digo que podem ficar um dia inteiro, um mês,  um ano que seja explicando, explicando, explicando, que eu não vou entender. Nunca. Digo que vivi, graças a elas, uma vida de mentira. E tudo por causa delas, duas bruxas fugidas, maquiadas, erradas.
    - Fizemos o melhor para você, Dora. Fizemos o que achamos mais certo. E, agora, você descarrega essa raiva boba sobre nós. E isso tudo o que Ele quer: quer nos separar para nós dominar.
   -Quem tem que saber o que é melhor ou não para mim sou eu mesma. O teu melhor, Alice,  com certeza,  não é o meu.
   E me levanto, e saio do quarto. Não  sem antes dizer que a morte do meu pai nunca me doeu tanto.  Não sem afirmar a elas que as coisas não serão tão pacíficas quanto talvez elas queiram que sejam. Não sem deixar bem claro  que a minha revolta, toda ela, vai ser dirigida aos responsáveis pela morte do meu pai. Seja ele o Demo, como você quer que eu acredite que seja, ou qualquer outra pessoa.
   Já na rua, olho para o bosque. Sinto que alguém me espreita, mas não tenho medo. Não tenho também desejo de enfrentar agora essa sombra  que me espiona. Preciso me fortificar mais. Sei disso, sinto  isso.

   Caminho pelas ruas ainda pouco movimentada desse sábado gelado.  Uma ou outra pessoa passa, esportista de final de semana, e só.  Não sei direito para onde vou, quero apenas caminhar,  pôr as ideias no lugar. Vez ou outra, imagens  sugeridas pelas aulas de história  do sor Ricardo invadem a minha mente: mulheres  gritam desesperadas  enquanto o fogo das fogueiras as consome; são bruxas,  devem morrer.
   Quando me dou conta, estou diante  da casa da Bete. Janelas ainda fechadas, a casa dorme. Sento no cordão da calçada e aguardo.
   E penso.
   Penso em Daniel,  penso na noite de ontem em que ele  me estendeu um pequeno pacote. Uma pequena correntinha de prata  com um D. Dê de Dora, ele disse. E dê Daniel.
   Eu sorri. Tentei sorri. Não consegui aproveitar o tudo que eu queria daquele momento. As descobertas feitas enchiam a minha cabeça de tanta raiva,que eu só conseguia mesmo era ficar olhando pra Alice,  olhando pra Alice, olhando pra Alice.  Queria que ela sumisse.  Mas ela não sumia. Era bruxa como eu, forte  como eu. Talvez mais forte ainda do que eu.

   Será que haverá espaço na minha vida para poesia? Hein, Augusto, haverá?
   
     Como um fantasma que se refugia
     Na solidão da natureza morta,
     Por trás dos ermos túmulos, um dia,
    Eu fui refugiar-me à  tua porta!
 
   Sou a própria solidão do solitário. A casa da Bete segue em silêncio, embora o sol se está sobre o dia mais cinzento da minha vida. Esse início de quinze anos promete sei lá  o quê pra essa minha vida que sei lá  o quê  será daqui pra frente.
   Penso em Puquerel. Ele, sim, sempre esteve comigo.  E, agora, por onde andará? O desejo de buscá-lo,  esteja onde estiver, vivo ou morto, nada mais importa, é grande em mim.
   Me levanto.
   Sei onde devo ir. Na verdade, lugar de onde eu jamais  deveria ter me afastado.
   Todavia, quando ameaçou primeiros passos, ouço meu nome. Me volto e Tito me sorri. Nas mãos,  uma rosa vermelha.
  - Eu tava indo lá na tua casa- ele diz e me estende a flor. - É  pra ti.
   Pego a rosa, faço oque todo mundo faz quando recebe uma flor,  levo ao nariz, aspiro seu perfume.
   -Presente de aniversário atrasado? - eu pergunto em tom de brincadeira.  Tento sorri, tento  demonstrar a naturalidade de uma menina comum que recebe de um amigo uma rosa como presente atrasado de quinze anos. Tento.
   - Não - Tito fala. - presente de qurm gosta muito de ti.
   E ele se aproxima e me puxa encontro dele e seus lábios tocam os meus e eu gosto daquele toque que me faz sentir amada, protegida, querida.
   Então.
   A voz dela dentro de mim interrompe carinhos. Irene me chama, eu sinto.
   Preciso ir ao encontro dela. E sei onde.
   Saio correndo, fujo de Tito, fujo daquilo que nunca achei que podia sentir pelo meu amigo. Fujo, e um espinho esquecido no caule da rosa machuca meu dedo. Mas eu não a solto. Não.
   Corro ao encontro de Irene.
   Sinto que tudo começa a acontecer e que nada pode impedir de vingar meu pai.
   Os Sete Nomes que me aguarde.
 

   Daniel. Tito. Tito-Daniel. A letra D de nossos nomes. Tito não tem D. A rosa. O espinho. O beijo. As palavras do Daniel.  As de Tito. Tito e Daniel. Um ou o outro. Nenhum.
   O tempo é de vingança. Não de amor.

  Corro e só paro diante da minha casa. A voz de Irene dentro de mim pede que eu a encontre na entrada da floresta. Amanhã, vamos buscar o qur deve ser buscado, ela diz. E eu penso em Puquerel.

    Antes.

    Quando abro a porta, tia Tânia se levanta e vem ao meu encontro. Não contém o desejo, me abraça,  me comprime contra seu peito e eu sinto o bater de seu coração.
   -Minha menina- diz e beija meus cabelos.
   Ela, Alice, apenas nos observa.

    Alice:
-Eu vou embora.

   Eu:
-Normal.
  
  Alice:
-Será melhor pra você.

  Eu:
- ...

  Alice:
  - Esqueça tudo, Dora.  Já falei com tia Tânia. Melhor vocês mudarem daqui.

  Eu
  -...

  Alice:
  -Esqueça de mim se julgar melhor. Eu vou entender.

   Eu:
   -Era só isso, Alice? Tiau, então.  Tenho mais coisas pra fazer.

 

 

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