6-Capítulo

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TERÇA, 10 DE AGOSTO
  Caminho pé ante pé pelas trilhas pouco abertas na floresta. Tudo muito escuro, mais sei que lá no fundo brilha uma pequena luz, sei que lá no fundo da floresta há um casebre, pequeno, mas confortável, e sei que lá encontrarei abrigo, uma lareira acesa e um prato de sopa quente. O vento uiva entre galhos das enormes árvores. Um corvo grasna alto. Um uivo soa longe.
Estou sozinha.
Chamo Tia Tânia. Nenhum resposta.
Chamo Puquerel. Nada de miado.
Chamo meu pai, e sua imagem se materializa na minha frente.
-Pai, estou perdida. Me tira daqui.
Ele me olha,move os lábios,mas nada ouço. Tento ler seus movimentos, tento descobrir a mensagem que está cifrada na sua boca. Impossível. A pouca claridade me impede de ver com clareza seu rosto. Mas sei que é ele, sei que é meu pai.
Ele aponta para o fundo da floresta. Para aquele lugar em que sei que uma pequena luz brilha, embora não veja. Eu volto meus olhos para o caminho por onde vim, olho depois na direção que  meu pai indica. Entendo que ele pede que eu retorne, que não me aproxime do casebre (pelo menos, acho eu, é isso que quero entender, sei lá ). Sinto medo.
  -Pai,me tira daqui.
  Ele se aproxima, mas não o suficiente para que eu possa toca-ló, para que eu possa sentir seu abraço de pai. Não. Parece que algo o impede de seu toque. E eu desejo tanto.
  De repente, um braço de fogo o envolve, ele parece  gritar, embora eu não escute. Ele faz sinal para que eu corra, para que eu volte. E o fogo circunda o pescoço dele, como se fosse uma força,e o aperta e o puxa por entre as árvores. Ouço arrastar de corpo. Grito.
-Pai. Pai
  E então ouço. Pela primeira vez na minha vida, a voz dele.
-Fuja, Dora.
  Depois, silêncio total.
  Então eu corro. Corro e sinto os galhos dos arbustos machucaram minhas pernas. Corro desesperada. Deixo que meus pés descubram o caminho.
  Até que.
  Até que, de repente, eu Caio num vazio enorme. Num abismo profundo. E grito. E chamo :Pai.
-Calma, minha menina- a voz de tia Tânia me desperta, me acarinha. Eu choro. Ela diz:-Foi só um pesadelo, minha menina. Só um pesadelo.
  Eu me abraço a ela. Sussurro.
-Ah, tia, eu não aguento mais.
  E ficamos ali, sem palavras outras. Ficamos buscando uma na outra a segurança desse amor que meio ao acaso, meio clandestino. Somos apenas nós duas o resto de uma família vitiminada por uma tragédia. Eu sou o fruto dessa tragédia. E sei que meu pai, onde quer que ele esteja, tem algo a me revelar. E esse algo, sinto, tem a ver com a Alice, tem a ver comigo, como os sonhos que sonho, com o poder de fazer as coisas acontecerem, que começo a acreditar que tenho e que tem a ver com a forma desgraçada como nasci.
  O pai morto.
  A mãe sumida no mundo.
  Eu largada, sem qualquer explicação, nos braços da tia Tânia.
  E a mancha de nascença avermelhada em meu braço.

  Sinto o latejar. Meu braço arde. Não, meu braço não. O que lateja é apenas a mancha, a marca, a cicatriz, ou sei eu lá como chamo essa lua minguante deitada, que está desenhada em meu braço. Às vezes, como agora, após um sonho ruim desses - assustador - ela queima. Certa vez, alhei-a no espelho e a vi avermelhada, como se de fato estivesse queimando, fogo em brasa.
- Tia, onde eu arrumei essa cicatriz? - perguntei um dia e o olhar da minha tia fugio do meu.
- É marca de nascença -Falou, voltando -se para o fogão e envolvendo -se com o almoço.
  Eu lembro que olhei para a marca e disse que ela parecia um par de chifres. Minha tia deixou um prato cair e ele se arrebentou em mil pedaços no chão da cozinha. Na época, nada achei estranho, era menina pequena ainda, mas agora - sei lá - tudo me soa tão misterioso que já não sei o que pensar desta marca ou de mim mesma. E meu aniversário se aproxima. E vou rever  Alice. E não sei por que, mas tenho dentro de mim que depois desta sexta-feira  (que será 13 como o dia em que eu nasci e que meu pai morreu)nada mais será o mesmo. Nada
Puquerel mia. Às vezes, acho que ele lê meus pensamentos, que ele sente o mesmo que eu. Bobagem, sei lá. Afinal, o que sei de mim mesmo?  Tudo é muito vago. A presença rara da minha mãe, os sonhos com meu pai, o pouco de informação sobre o passado de nossa família. Tia Tânia fala pouco sobre nossa história. Parece mesmo que somos apenas nós três :ela, eu e Alice.
  A mancha ainda lateja.
  Não sei se estou enganada, mas acho que quando meu aniversário se aproxima, ela lateja mais. Passo a mão sobre ela, sinto-a áspera. Uma lua deitada, foi assim que Penny Lany descreveu minha marca. Já o Werner Werner disse que era um par de chifres. Um par de chifres.
  Acho que prefiro que seja uma lua. Minguante, deitada,  Cheia, crescente, tanto faz. A lua tem lá seus segredos, tem mistérios. Já chifres só me remetem a coisas terríveis. Com certeza, ninguém gostaria de trazer chifres tatuados no próprio braço desde o dia em que nasceu.

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