3-Capítulo

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O Ardor na mancha que trago desde meu nascimento em meu braço não me incomoda tanto quanto saber que alguém me espreita lá da rua.
Silêncio.
Então, me levanto, celular agora apertado na mão, e me dirijo para a sala. Caminho até a porta, tirando força sei eu lá de onde. Abro a janelinha. E o breve ruído faz com que o homem que se afasta em direção ao portão se volta para mim.
Olhos nos olhos.
O sorriso mais lindo que já vi.
Daniel.
Atrás dele, nada do carro de meu pai. Apenas a rua deserta. Nada de figura sombria, nada de capuz sobre a cabeça, nada de capa escorrer pelas costas. Apenas o sorriso de luz do Daniel.
-Oi, Dora.
-Oi-eu respondo, ainda meio tonta pelo tudo. Eu e meus sonhos que se confundem com a realidade. Lembro da prova. Lembro dos cabelos da Jeanine.
Daniel se aproximou da porta, diz que estava indo embora, pois achou que eu não estava em casa. Depois, fala que apenas deu uma passada por aqui pra ver se eu estava bem.
-Você  não apareceu na Bete ontem.
Eu fico parada, confusa, tonta, atordoada, sei lá. Ele ali, bem na minha frente, e eu sem coragem de abrir a porta, sem coragem de falar. Na verdade,  querendo abrir a porta, querendo falar, mas muda feito meu  pai no  sonho.
-E aí, tudo bem?
-Tudo - eu digo,e as palavras arranharam a minha garganta.
Ele sorri.
-Então, tá.
Eu digo tá. E ele fala que a gente se vê amanhã no Colégio. Dá um tiau com a  mão e vai embora. Puquerel se enrosca nas minhas pernas quando eu penso em abrir a porta para chamá-lo. Eu me atrapalho, fico zonza de novo. Deixo a chave cair no chão, me abaixo para juntá-la, mas não a encontro. Quando espio novamente pela janelinha da porta, Daniel já desapareceu.
Ah, que ódio de mim mesma. Que raiva. Ele ali, bem na minha frente, e eu ainda apatetada por causa de uma fantasia besta:o carro, a sombra. Ah, quando isso tudo vai acabar? Quando? Não quero ficar vendo e sentindo coisas que não existem.
Chega.
Basta.
Fim.
Queria ter o poder de, ao dizer fim, fazer com que o fim chegasse mesmo.
Até amanhã,  o Daniel falou. Amanhã, segunda -feira da semana em que eu completo quinze anos.
Amanhã, aula.
E sei que. Quando o relógio despertar e tia Tânia entrar em meu quarto, não vou querer levantar. É sempre assim:uma vontade de não começar tudo de novo a cada semana que inicia. Uma vontade de mergulhar num buraco bem fundo, cheio de ratos, aranhas e de morcegos, e ficar lá, quietinha, escondida, sem que ninguém, por mais que queira, possa adivinhar onde estou e o que faço. Aí, lá, enrolada em mim mesma, talvez eu possa chorar, e chorar, e chorar.
Mas amanhã pode ser diferente. Vai ser. Afinal, o Daniel esteve aqui. Veio ver se eu estava bem, se preocupou comigo. E eu nem pedi pra ele entrar, não ofereci uma água, um suco; fiquei como uma idiota parada na porta, gaguejando um nada de palavras. Besta que fui. A mais besta entre todas as besta.
A Bete, quando eu contar pra ela, não vai acreditar. Ah, vai.
Puquerel lambe minha mão. Tia Tânia não gosta que ele durma na minha cama, mas eu não me importo. Gosto de saber que ele está por perto. Sinto que ele gosta de mim como ninguém jamais gostou. Amor de bicho, se é que Puquerel é apenas um bicho, não exige nada em troca.
Abro a gaveta da mesa de cabeceira e retiro de dentro da pequena agenda preta uma foto de meu pai. A única que sobrou nada dele nenhum sinal de sua passagem em minha vida. A não ser essa foto, que um dia encontrei no meio das coisas da tia Tânia, e os sonhos.
Na foto, ele sorri. Olhos muito claros, boca grande, cabelos crespos. Tanto na foto, quanto nos sonhos, ele está mudo.
Fico sempre a imaginar que a voz do meu pai é grossa, meio rouca, forte. Parecia com a do Daniel, o garoto mais lindo que eu já vi na minha vida.
E que veio aqui hoje. E que eu.
Ligo pra Bete e conto tudo. Só não falo do homem-sombra e do carro do meu pai, pra ela não ficar achando, assim como eu já acho, que eu sou mesmo estranha.
Puxa, Dora, e você perdeu a chance da sua vida,  diz a minha amiga. Ah, sei lá se perdir mesmo. Ele disse até amanhã e, quando alguém fala até amanhã, é porque tá esperando ver a gente no outro dia, não tá?
-Sim, sim, acho que tá -a Bete respondeu.
-Então? - eu disse, mas não pudemos falar mais, pois a mãe dela, a chata da mãe dela, ficou mandando ela desligar. Eu ficava ouvindo o que ela cochichava pra Bete. Ela dizia assim: Desliga esse telefone, Bete. Tá tarde. Amanhã tem aula. Chega de papo com essa guria estranha. Você bem sabe que eu não gosto nem um pouquinho dessa amizade de vocês. Menina sem mãe, criada por tia. Desliga, anda. Eu estou mandando, Elisabete. Ouviu? 
  Ah, que ódio.
  Meu desejo é que a mãe da Bete tenha sonhos horríveis essa noite, que ela sonhe com o homem-sombra e que ele a encha de medos. No sonho, ela corre, corre, e ele com uma faca bem afiada corre atrás dela e diz que vai arrancar a cabeça dela e dar pra gurizada jogar futebol na rua.
Rio de mim mesma. Mando um beijo pra minha amiga. Até amanhã,  digo e já me lembro das palavras do Daniel.
Melhor tentar dormir.
Seria tão bom se hoje, pelo menos hoje, ao invés de sonhar com meu pai, ou com aquelas outras coisas que eu não entendo, eu sonhasse com Daniel. Quero tanto.

A Filha das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora