DOMINGO, 15 DE AGOSTO
Alice foi embora. Para sempre, parece. E o que deveria me aliviar, me enche de certa raiva. Raiva por ela fugir da minha vingança, raiva por ela mentir que apenas faz isso para me proteger. Raiva por eu não ter pedido que ela ficasse. Raiva de mim mesma por ter pensado isso que acabei de pensar.
Raiva.
Vez ou outra, o calor dos lábios do Tito esquentam minha boca. No copo com água, a rosa espera. Sobre a cômoda, a Correntina com a letra D. No celular, as ligações não atendidas da Bete, do Daniel. E do Tito.
Digito um torpedo. Envio para os três. Digo que amanhã, na aula, conversamos. Quero só adiar tudo, fugir um pouco de uma possível decisão: a rosa, a letra D.
Fuga para sempre, de repente. Tudo depende do hoje. Não sei.
A voz da Irene em mim: vem. Estou esperando na entrada da floresta. Agora.
Saio do quarto, afasto a tigela com as cinzas. Ouço a pergunta de tia Tânia. Respondo:
- Vou caminhar um pouco.
Abro a porta. Fecho-a atrás de mim e corro ao encontro das árvores. Irene não sorri, não demonstra nenhuma atitude de acolhimento. Está tensa como eu. Sinto sua mão gelada quando pega na minha e me puxa rumo ao interior da floresta. A estreita estrada, quase fechada por abustos e árvores, é a mesma dos meus sonhos. Fico querendo encontrar meu pai.
- No centro da floresta, existe um casebre.
- Eu sei, já estive lá.
Irene não se interessa pelo que digo. Caminha firme sempre em frente. Fala:
- Lá é o coração do Mal. Por isso, ele a protege. Por isso, seu pai ainda por aqui. Seu pai quer o mesmo que eu quero, que nós queremos, na verdade. Adaga de mirra. Só ela, empunhada por uma Errada, ou por una descendente dela, cravada no coração do Demo, do senhor dos Malditos, porá fim ao seu reinado, ao seu poder sobre nós, bruxas.
- Você quer dizer que eu terei que cravar uma faca no coração do Diabo?
- Aham- diz Irene, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
Sinto leve tontura. Sensação de medo infinito. Matar o Mal é coisa inacreditável. Há poucoa dias minha maior preocupação era minha estranheza, hoje sei que sou de fato a própria estranha, a filha das sombras. E isso me angustia.
- Vem- fala Irene, os olhos cada vez mais vermelhos ( os meus estarão assim também?) Voltados para mim. - O tempo é pouco, Dora. O Sete Nomes está atrás da tua mãe. A partida dela o afastou por algum tempo daqui. Ela é nossa aliada.
Novamente, a sensação de desentendimento me invade. Como assim Alice é nossa aliada? Não posso
compreender. Quero ela longe, bem longe, e pouco me importa o que o Demônio possa fazer com ela. Ele, o Mal, que acabou com meu pai por causa de Alice, agora terá que se ver comigo.
Avanço. Tento vencer o medo, o receio, o tudo que se abate sobre mim. Alcanço Irene, caminhamos lado a lado. Firmes.
E então.
E então Irene me revela dor maior ainda.
- Eu temi, quando ele se aproximou, que você pudesse se envolver com ele. Aí, tudo perdido.
- Ele quem? - eu pergunto, embora meu coração ja me grite a verdade, antes mesmo que as palavras de Irene a revelem.
- Daniel. Na verdade, foi ele que indicou ao Senhor o teu destino. Queria, tinha que te revelar a tua história. Se isso fosse feito, você ficaria para sempre presa a ele e ao seu Mestre, o Mal-em-pessoa. - Irene para, olhos nos meus olhos e diz o que para ela, talvez, seja óbvio, no entanto, que eu não compreendo: - Dora, o Daniel é um vigilante.
Talvez ela leia, acredito que sim, em meu rosto o tanto de interrogações que o nome de Daniel provoca em mim. Um vigilante? Nada sei do que ela me apresenta, mas lembro de suas palavras a me dizer que eu me afastasse do Daniel, que ele não era o que parecia ser. A letra D, o sorriso mais lindo, a voz rouca. Quem era afinal Daniel?
- Um vigilante é um ser, uma sombra, que vigia os humanos na terra. Seu maior objetivo é descobrir em que maquiagens se escondem as bruxas disfarcadas ou aquelas que, como você, desconhecem sua origem. E, no caso um vigilante seja o porta-voz de tal revelação ou descoberta, a bruxa estará para sempre submissa a ele. Era isso que Daniel queria. A revelação sempre feita em dia de aniversário. E só uma pessoa poderia livrar você do poder dele: sua mãe. Desde qur no dia de seu aniversário fizesse ela mesma a revelação. Alice teve coragem. Procurou você, contou-lhe tudo sobre sua origem. Assim, você é uma bruxa liberta das tramas do Demo, Dora. Tem força para lutar contra ele. Para ser uma revoltada, como eu, como sua mãe, como sua tia.
Daniel.
O carro do meu pai. A sombra mo jardim e ele sorrindo para mim em frente à porta. Difícil crer, mas tudo fazendo um sentido que eu não queria que fizesse. Penso em Tito, na Bete, na Penny Lane. Os colegas de aula, os professores. Fico querendo saber se todos são outros ou são eles mesmo. O Werner Werner, o Dimas, esses dois bem que poderiam ser vigilantes, não o Daniel.
- Nem sempre as coisas são como queremos, Dora. Esses dois aí são só una idiotas metidos à besta. Você não sabe a vontade que já tive de transformá-los em sapos. Ou porcos. Não, lacraias ou baratas seria o melhor pra eles.
-Você pode transformar alguém e sapo?
Ela ri. Pela primeira vez nessa noite de domingo, lua cheia ainda, ela ri.
- Ah, Dora, às vezes parece que você não tem a exata noção de quem você é, de quem nós somos. Quando uma bruxa for elevada à condição de Brixta, a soberana entre as bruxas, nosso poder será maior ainda.
Ela estende o braço e contém minha passagem. Aponta para a frente e vejo o casebre que guarda a adaga de mirra. Irene se abaixa e eu a imito.
Diz que é melhor aguardarmos um pouco, observamos se há alguém zelando pela entrada. Você tem que entrar pela porta da frente, a adaga estará dentro de um baú bem no meio da sala. Pegue-a, firme, enrole-a no pano dourado que estará também dentro do baú e saia sem se voltar. Ocorra o que acorrer, não se volte. Entendeu? Agora, vá, Dora. Vá.
Me levanto, piso firme o chão cheio de gravetos da clareira que abriga o casebre e avanço. Quando coloco a mão na porta e a empurro, a voz de meu pai pede que eu pare.
Eu paro.
Siga, Dora. Vamos, pegue a adaga- diz Irene dentro de mim.-Não minha filha ,o momento não é de vingança ,é de afastamento. Não tente vencer o invencível.
-Ele te matou,pai. Impediu que eu te abraçasse, que eu. Meu pai surge diante de mim, sorri. Estende o braço em minha direção, toca meus cabelos, meu rosto, e eu não sinto seu toque, apenas uma leve sensação de calor.Apenas
-Tua mãe precisa de ti. Da tua força, que agora você sabe que tem. Vejo o pequeno baú sobre o tapete da sala sem móveis. Sei que lá dentro a adaga espera pela vingadora. sei. Avanço. Meu pai tenta me segurar, mas ele habita um mundo em que o contato físico com o meu é inadmissível.
Isso, Dora. Pegue a adaga!
-Filha- ainda ouço. Meu pai tenta ser impedimento de algo que eu não quero deixar de cumprir. Que o Demônio morra, que as bruxas sejam livres, que a Brixta assuma o poder.
Pego o baú, abro-o, retiro dele a adaga de mirra, envolvo-o no pano dourado e saio sem me voltar. Caminho firme ao encontro de Irene, julgando que meu pai fosse ser empecilho.
Mas não.
Sua voz emudeceu.
Sua imagem não mais se faz.
A floresta agita-se em ventos intempestivos. No alto na noite escura, a lua cheia amareleja.
Quando entro em casa, tudo está silencioso. A vasilha com as cinzas ao lado da porta. E eu, sem saber direito o porquê, chaveiro a porta e coloco em frente a ela o objeto protetor. Assim, me sinto mais tranquila.
Amanhã é segunda-feira, dia de retorno à rotina, que talvez eu não mais consiga cumprir, embora Irene tenha dito ser necessário. Tudo tem que parecer normal. Quando descobrir que a adaga está contigo, ele mesmo vai te procurar. Então, você já sabe o que fazer: crave-a no seu peito. Bem no meio do peito, é lá que há o buraco da ausência de coração. É nesse buraco que a mirra da adaga precisa penetrar. E com ela cravada ali, o Demo passa a ser o que sempre deveria ter sido, o Nada. Nós, as bruxas, estaremos novamente no poder.
Ainda penso que tudo é sonho. Apenas continuação dos tantos pesadelos que tenho, tive, terei. Presente, passado, futuro. Futuro do presente, aquele cujas ações não deixam dúvida de que ocorrerão.
Alice foi embora.
Meu pai sumiu.
E Puquerel? Estive na floresta e não o encontrei. Saudades do meu gato. Puquerel é um espírito protetor, falou Alice. Daniel é um vigilante, a sombra dedo-duro, disse irene. Sobre a cômoda, a corrente com o D. Pego-a e me sinto una idiota.
Depois, aspiro o perfume da rosa que Tito me deu. Ainda cheia de viço.
A marca de chifres em meu braço arde. Meu celular vibra: Daniel.Atendo:
-Oi, Dora. Vai à aula amanhã?
-Aham.
-Preciso falar contigo.
-Eu também.
E minto que já estava indo dormir. Ele se desculpa pela hora, desliga, não sem antes perguntar se já usei a correntinha. Olho para a cômoda.
-Ficou linda- minto.
Bruxas são as senhoras da magia. E da mentira.
Desligo.
Gosto de me sentir assim: ardilosa, dissimulada, mentirosa.
Como Alice.Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico,procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!Monólogo de uma Sombra chama-se o poema de Augusto dos Anjos. Poderia se chamar Monólogo de Daniel. O que diria ele em seu monólogo? Imagino um monte de coisas para falar pra ele amanhã, caso eu vá mesmo ao colégio. Mas minha maior curiosidade é saber o que ele tem a me dizer, que mentiras falará a sombra no jardim?
Na última página do livro Eu e outras poesias, escrevo o nome de um garoto amável, sincero. Alguém que tem lábios macios e que estende flores vermelhas.
Durmo.
E no sonho meu pai reaparece e me pede novamente que eu me esqueça da vingança. Não quero ouvi-lo.
Nem no sonho.
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A Filha das Sombras
RandomEstas estranhas mulheres que têm poderes sobre a natureza, que são capazes de gerar vida e morte, senhoras dos feitiços, seres capazes de voar sobre vassouras e de se transformar em pássaros negros são as bruxas. Diante de uma delas, só podemos mes...