5-capítulo

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    Tia Tânia apaga a luz da sala. Ouço o ruído de sua mão testando se a porta está chaveada, depois escuto o ruído do prato de cinzas sendo depositado em frente a ela. Puquerel se enrodilha ao meus pés na cama. Eu puxo o cobertor até o pescoço. Leio Augusto:o poema solitário.

Como um fantasma que se refugia    Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta. Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Busco, quem sabe, na poesia, alguma resposta pra esse medo de mim mesma. Essas coisas estranhas que me aconteceram já não me parece mais coincidência. O homem-sombra, os sonhos (e não quero dormir, não quero sonhar com meu pai e perceber sua angústia em querer me dizer algo sem conseguir que eu o escute), as palavras da Bete.
  Minha amiga chegou atrasada hoje. Faltou aos dois primeiros períodos. Algo anormal. Sua mãe a manda pra escola mesmo quando está adoentada. Diz que doença não é motivo para negligenciar os estudos. Coisa de mãe perturbada, eu acho. Onde já se viu mandar a filha doente pra aula? Mais o fato é que o atraso não foi por causa de alguma doença da Bete.
  Não.
  Quando suas palavras de explicação chegaram até mim, senti uma sensação ruim, vontade de desmaio, vontade de sumir do mundo antes que mais coisa desse tipo passam ocorrer. A Bete falou como se fosse normal o que ela dizia, não sabia o mal que suas palavras me provocaram.

Ela disse assim:  ah, eu me atrasei por causa da minha mãe. Pode? Ela que não deixa nada fora do lugar, que não atrasa um minuto sequer, foi a culpada hoje.

E seguiu contando que a mãe dela havia tido uma noite péssima, recheada de pesadelos horríveis, em que sombras do outro mundo tentavam puxá-la para baixo da terra, é gritavam, e a arranjaram, e tentavam  mordê-la e devorá-la. Eu acordei com os gritos dela, Dora. Nossa, eram apavorantes. Parecia que minha mãe tava sendo devorada viva mesmo. Coisa terrível. Um pesadelo e tanto. E o pior, você nem sabe, é que os braços dela estavam arranhados, parecia que alguém no sonho a tinha agarrado com força, com ódio, com raiva. Ela ficou apavorada disse que uma sombra gigantesca a perseguia com uma faca na mão, e que uma voz rouca, meio saída das profundezas da terra, diziam que iria lhe arrancar a cabeça. Acho que, no desespero do sonho, ela acabou se arranhado. Fiquei com pena dela. Já pensou sonhar um troço assim? Deus me livre.
  Não disse nada, que nada podia dizer mesmo. Lembrei do meu desejo. Lembrei que no domingo tinha desejado que a mãe da Bete tivesse pesadelos horríveis por não ter deixado minha amiga vir aqui em casa ontem.
  Lembrei.
  E essa lembraça me trouxe à mente aquela outra. A da Jeanine. Ela e seus cabelos louros lisos. Ela chegando ao aniversário da Penny Lane toda linda e eu desejando que um temporal desabasse sobre ela sobre e que seu cabelo molhasse e ficasse mais crespo que o meu e que seu vestido molhasse e que ela toda se molhasse e ficasse feia e a maquiagem escorresse e o Cabelo escorresse e tudo escorresse para que o Daniel não olhasse para ela e que todos rissem dela.
  Eu desejei isso.
  Desejei com toda a força.
  E nem bem a Jeanine desceu do carro, toda linda,  o mundo desabou sobre a cabeça dela. O céu relampejou, um raio iluminou a noite e não deu tempo de nada. A chuva grossa e forte caiu sobre a cidade, sobre o carro, sobre a Jeanine, sobre os cabelos da Jeanine.
  A festa acabou pra ela. E eu fiquei achando (ou pelo menos querendo achar)que tudo não passou de uma grande coincidência. Mais aí veio a prova de história. E agora, os pesadelos da mãe da Bete.
   Chamo o puquerel, o abraço-o contra meu peito. Sinto medo. Medo de mim mesma. Medo de fechar os olhos. Medo de dormir. Medo de que outras coincidências como essas possam acontecer.

A Filha das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora