9- Capítulo

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QUINTA, 12 DE AGOSTO

   Não dormir bem. Nada de estranhar. Coisa comum na minha vida. Só que, dessa vez, não fiquei sonhando com o meu pai. Mas sim com Irene, que ficava me dizendo, repetindo e repetindo, que eu não devia confiar no Daniel, que eu me afastasse do Daniel, que eu não levasse a seria as palavras do Daniel. Os olhos vermelhos, os cabelos desgrenhados, parecendo uma bruxa. Até voz de bruxa Irene tinha no sonho.
   E, lá no sonho também, o Daniel tinha vindo em minha direção com aquele sorriso mais lindo do que qualquer sorriso e tinha dito que me amava. Só que, quando ele ia me beijar, eu ouvia gritos da Irene dizendo Não, não, não.
   Acordei de madrugada. Puquerel aninhado nos meus pés. Nada de estranhar, à noite, o Puquerel está sempre enrodilhado nos meus pés. E eu gosto.
   Só que tudo lá fora estava silencioso que parecia até sobrenatural. Nenhum ruído. Nada. E eu me senti meio perdida dentro da noite escura, como se o mundo tivesse acabado, todo mundo morrido ou fugido sei lá  pra onde,  e só eu sobrevivente ou esquecida por todos. Pelo Daniel, pela tia Tânia, pela Bete, pelo Tito, pela Alice. Mas esta até não estranho, está sempre me esqueceu, desde que nasci.
   O relógio desperta, e eu me levanto meio cansada. Meio desejosa de que meu aniversário de quinze anos chegue. Durante a madrugada insone, fiquei pensando que tenho  que perguntar para a Alice  tudo o que me incomoda. Ando vom vontade de ouvir as razões dela. Que eu, sei lá, tenho as minhas. Mas quero entender as dela. O professor Ricardo diz que, em história  (e ele fala que a vida da gente também é uma história, também faz parte da História ), tudo tem pelo menos dois lados, duas visões. Nada é tão simples quanto parece. Então, se eu tenho a minha verdade, ando querendo conhecer a da Alice. Quem sabe eu perguntando, ela não se sente animada ou, pelo menos, estimulada a me falar da vida dela, que, final de contas, tem algo a ver com a minha.
   É isso. Está decidido. Amanhã, eu e a  Alice vamos ter uma conversinha especial
   Pelo menos em relação à Alice, minha decisão me deixa mais leve. Mas ainda tem a Irene, as palavras da Irene, e o Daniel. Daqui a pouco, vou estar no Colégio, vou encontrar os dois, e não sei direito como agir, o que fazer. Gosto do Daniel, é verdade. Mas, mesmo achando que o que a Irene disse não tem nada a ver, sei lá, me deixou meio atrapalhada. Mais ainda do que já estou. Estava. Estou. Sei lá.
   E, depois, teve o sonho.

   Minha vida parece mesmo estar ligada aos sonhos que tenho. Agora que os pesadelos com o meu pai parecem que deram um tempinho, vem Irene me assombrar. Será que os meus colegas  também têm vidas complicadas como a minha? Acho que não. Acho que não devem ver a vida da forma tão confusa quanto eu
Vejo:pai morto no dia do meu nascimento, mãe que só aparece uma vez por ano, uma tia querida, mas que não é mãe. Tias nunca serão mães. Por mais que tentem. Acho.

   Na van, abro meu caderno na última folha e traço um D bem grande. Fico olhando para ele e penso o que estará o Daniel fazendo naquele momento. Estará pensando em mim enquanto se dirige pra escola? Ele vai sozinho, de bicicleta. Nunca vi os pais dele. Nem nas quermesses, nem nas celebrações, nem em momento algum. O Tito disse que eles são mais velhos, que não gostam de sair muito. Pelo menos foi o que o Daniel disse pra ele.
   Encho o D grande de um monte de D menorzinhos.
  Respiro fundo.
  Amanhã será meu aniversário. Quinze anos. Data que algumas meninas ficam à espera durante um bom tempo. Data que muitas das minhas colegas esperam com expectativa: querem festa, querem bolo vivo, querem baile de debu, querem um vestido lindo, querem viagens e mais e mais presentes. Eu  não quero nada.
  Queria, acho, apenas entender essa minha vida estranha e complicada. Só isso. Mais nada

  -Dora, me diz uma coisa:por que você anda fugindo de mim?

   A pergunta me pega de surpresa. O que eu digo? Posso me fazer de desentendida:Eu fugindo? Que bobagem é essa, Daniel?Por que eu fugiria de você? Posso, sei lá, ser meio nem estou nem aí, cara pálida:Ih, Daniel, bebeu? Não, muito artificial. Sorrio. Olhos nos olhos dele. Olhos lindos, aliás. E ele me sorri também. Me devolve aquele sorriso tão lindo. Lindo. Lindo. Ai, o que eu falo?  O quê?   

-Como assim?

   Faço de conta que não entendi e aí consigo ganhar tempo para pensar o que posso dizer a ele. Baixo os olhos.

  -Ah, toda vez que me aproximo, você parece que arruma alguma coisa pra fazer.
  -Impressão sua, Daniel.

  E aí eu avisto o Tito e a Bete, fico desejando que eles me vejam, que me salvem daquela situação. E basta eu desejar para que o Tito se volte para a cantina e me aviste ecene e se dirija ao meu encontro. Percebo que o Daniel não se agrada muito com a chegada dos meus amigos. Fica meio sem graça. Pede um refri para a atendente.
  Depois, sentamos os quatro numa das tantas mesas da cantina. O tempo ameaça  chover, tudo meio cinza, nuvens carregadas, o frio gelado do inverno entra pela porta aberta. Tito vai falando sobre o trabalho de história. Diz que a inquisição foi um momento terrível, que muita gente inocente acabou morrendo. O que vocês acham de a gente almoçar no Colégio hoje e terminar o trabalho?, ele sugere. Concordamos, embora a Bete diga que terá que avisar a mãe e que, provavelmente, ela não permitirá, pelo menos não deixará que eu fique a tarde inteira, sabe como é a mamãe, ela quer que eu estude, sonha que eu passe direto no vestibular,  quer que eu faça medicina. Vocês sabem, né?
  Ela pega o telefone.
  Daniel me observa, nada diz. Só me olha com aqueles olhos de ler alma. Então disfarço, me concentro na Bete, fico pensando que até é bom ter uma mãe que se preocupe com a gente, mas que eu não quero aquele tipo de preocupação. Aliás, acho que nem é preocupação. Na verdade, a mãe da Bete quer mandar na vida dela, quer que a filha faça apenas o que a mãe acha melhor para ela. Mas e será  mesmo?
   Bete desliga o celular.
  -Ela deixou só até às quatro. Disse que se a gente se concentrar dá pra fazer o trabalho e ainda sobra tempo.
  - A tua mãe é uma chata, Bete- fala Daniel. Depois se levanta, fica me olhando como se me convidasse pra ir com ele. Eu bem que queria, mas não podia deixar meus amigos sem mim. E o trabalho sobre a inquisição? Eles não poderiam fazer sozinhos. Ou será que poderiam? Eu não digo nada. Nem ninguém diz. Ficamos os três meio apatetados com a coragem do Daniel em dizer aquilo que todos nós estávamos pensando. A mãe da Bete é mesmo uma chata.
  Daniel sai, atravessa o pátio do Colégio sem se voltar para trás.
   Depois  que a Bete foi embora, eu e o Tito ainda ficamos mais uma hora envolvidos com o trabalho na biblioteca. Eu gosto do Tito, acho que ele é bacana, tranquilo. Parece ser aquele tipo de garoto decidido. Fala sempre com firmeza e com certeza sobre si e sobre o que pensa sobre o mundo, sobre as coisas do mundo. Gosto de conversar com ele, gosto da segurança que ele me passa. O Tito é um bom amigo. Fico com vontade de partilhar com ele tudo o que tem  me acontecido. Fico com vontade de dizer a ele que o Daniel tem se aproximado de mim, que eu gosto do Daniel, do sorriso do Daniel. Mas não digo nada. Não falo sobre minha mãe, sobre meus sonhos, sobre as palavras da Irene, sobre nada.
  Não falo, sei lá por que não falo. Sei que o Tito iria ter algo legal pra me dizer. Mas não falo. Não falo nada a não ser sobre Idade Média, sobre Inquisição.
  Nos despedimos no pátio. Perdi a van, porém não falo pra ele. Fico na calçada quando ele entra no carro do pai dele e me acena da janela. Chego a pensar que ele não me ofereceu carona, porque eu fiquei desejando de todo o coração que ele não me oferecesse. Às vezes, começo a achar que tenho poder de fazer  acontecer as coisas que eu quero que aconteçam. Boas ou más. Assim como ocorreu com a Jeanine, assim como ocorreu na prova de história, ou com o pesadelo da mãe da Bete.
  Sinto um frio percorrer o meu corpo. O dia começa a ceder lugar para a noite. Caminho pela rua deserta em direção à avenida onde passa o coletivo. Se ele demorar, pego um táxi. Meu celular vibra. Tia Tânia. Atendo e digo que já estou indo. Ela pede que eu tome cuidado. Respondo que não se preocupe.
  Um novo arrepio de frio me toma.
  Caminho mais rápido.
  E, quando aquela mão pesada toca meu ombro, meu coração dispara. Minhas pernas, no entanto, embora desejem correr, param, congeladas pelo frio e pelo medo.

TAMTAMTAM. QUEM SERÁ?  Próximo capítulo sai ainda hoje,  me desculpem pela demora, muita coisa para terminar nesse final de ano, beijokas :3

 
 

A Filha das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora