-Oi - diz uma voz rouca, reconhecida. Me volto e Daniel me sorri. -Te assustei?
Eu sorrio, minto-Não
E ficamos assim, nos olhando sei lá por quanto tempo. Então ele começa a dizer tudo o que eu sempre desejei ouvir: que eu sou linda, que ele me acha uma garota interessante, que ele sente vontade de ficar mais próximo de mim, que ele gosta de mim. Eu ouço calada, coração disparado por um outro tipo de susto.
Então.
Então o rosto dele se aproxima do meu e eu sei o que acontecerá, eu quero o que acontecerá, quero sentir os lábios do Daniel nos meus. Quero. Fecho os olhos, quando a mão dele (fria, muito fria, contaminada pelos ares do inverno ) toca meu rosto.
Fico à espera.
Mas alguém chama meu nome. Alguém grita meu nome e aquilo que era encanto se quebra. A mão de Daniel solta meu rosto e, sem dar tiau, sem concluir aquilo que tanto aguardava, esperava, queria, se afasta com a sua bicicleta. Bicicleta, aliás, que eu nem perceberá que estava com ele.
A voz repete meu nome. Dora. Agora mais calma.
Eu olho para Irene e custo a acreditar que ela foi capaz de destruir aquele momento lindo, que já não sei se foi sonho ou realidade. Sonho, só pode. Se realidade, teria o Daniel ido embora sem se despedir? Teria?
Irene sorri, diz que se atrasou na escola e que estava com medo de seguir pela rua sozinha.
- Quando te vi, disse pra mim mesma:Tô salva.
Seus olhos espreitam a rua, os arredores, parecem mesmo temer algo. Caminhamos juntas até a avenida. E nenhum de nós toca no nome do Daniel.
Há luz na sala. Tia Tânia me espera, acho, com um lanche sobre a mesa. Ela anda pouco falante nos últimos dias. Apenas preocupada, percebo, embora eu não consiga descobrir seus motivos. Os olhos sempre distante, fogem dos meus.
Fico parada em frente à floresta. Desejo maior de mergulhar naquele mundo tão presente no meu sonho. Mas temo. Temo que aquele bosque seja mesmo um universo mágico, louco. Temo ficar para sempre presa entre os galhos das grandes árvores que habitam minhas noites de pesadelo.
Porém.
Porém aquela escuridão é convite. Não estará lá dentro, quem sabe, a resposta para todas as perguntas que vivo me fazendo e para as quais não encontro respostas? Nos meus sonhos, meu pai está lá e ele tenta me dizer algo. Tenta, tenta, tenta.
Vejo uma luz que pisca entre as árvores. Sei que ela está distante, bem distante. Sei que preciso ir ao encontro dela, mas temo. Sinto algo roçar em minhas pernas. Quase grito. Todavia, o miado de Puquerel me acalma. Ele me chama para dentro de casa, para a segurança de dentro de casa, para o abrigo que a casa da minha tia me oferece.
Entro.
Tia Tânia me sorri. Levanta-se, vem ao meu encontro, me dá um abraço forte e diz que meu lanche está na mesa.
-Se preferir, eu posso aquecê-lo.
Eu digo que não. E olho bem dentro dos olhos dela e digo que vi uma luz piscando no interior da floresta.
-Que floresta?
Sinto que ela sabe do que estou falando, mas parece querer ganhar tempo.
-O bosque -eu falo- Vi uma luz piscando piscando lá dentro.
- Uma luz? Ah, Dora, deve ter sido impressão sua.
-A luz parecia me chamar, tia.
- Bobagem, minha menina. Bobagem. Vem, o lanche está esperando. -e desconversa. Pergunta por que eu me atrasei. Não respondo e ela não insite.
Não quero mais conversar sobre isso. Não quero. Já percebi que, se de fato algum mistério envolve minha vida e aquela floresta, somente eu mesma, por minha conta e risco, terei que descobrir. Se depender da tia Tânia ou da Alice, nada além do que sei, do pouco que sei, sobre minha história será revelado.
Mas sinto.
Sinto que alguma coisa existe.
Sinto que, se essa alguma coisa existe, o momento de descobrir está próximo. Amanhã faço quinze anos, não posso mais ser uma menininha que tem medo de escuro, de pesadelos (mesmo que eles se repitam desde que me conheço por gente ), de floresta.
Vou para o meu quarto, apago a luz. E aguardo.
Aos poucos, o silêncio vai tomando conta da cidade, da rua, da casa. Levanto da cama, calço meu all star preto, pego uma lanterna na gaveta e saio com cuidado. Puquerel se enrosca nas minhas pernas, mia alto, peço que faça silêncio, ele custa a me obedecer. Agora, me segue silencioso. Parece perceber que nada nem ninguém vai me impedir de fazer o que quero, o que preciso fazer.
Na frente da porta da rua, o prato de inox com as cinzas que tia Tânia coloca para proteger a casa. Afasto-o, abro a porta com cuidado e saio para a noite.
No alto, as nuvens se dissiparam e uma enorme lua cheia, toda redonda, ilumina as copas das árvores e lança raios de luz pelas ruas e calçadas. Sinto um arrepio. Não sei se de medo ou frio.
É agora, 12, quinta. Faz frio. Acho.
Encosto a porta atrás de mim e saio.
Caminho firme em direção à floresta. Puquerel corre na frente e desaparece entre as árvores. Eu o sigo. É agora ou nunca.
Agora.
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A Filha das Sombras
RandomEstas estranhas mulheres que têm poderes sobre a natureza, que são capazes de gerar vida e morte, senhoras dos feitiços, seres capazes de voar sobre vassouras e de se transformar em pássaros negros são as bruxas. Diante de uma delas, só podemos mes...