E naquele dia eu percebi que ela me traria problemas, mas por que eu?
Aquele foi o começo da minha desgraça e, ao mesmo tempo, dos dias mais lindos da minha vida. Ela tinha, sim, o poder de me destruir ou me fortalecer... Bastava que ela escolhesse.
Acordei com mãos quentes segurando as minhas. Arrepios percorreram meu corpo e o cheiro de jasmim dela me invadiu. Tive medo de que, se abrisse os olhos, aquela sensação da presença de Thamy simplesmente desaparecesse. Fiquei ali quieto, curtindo a sensação, até ter que abrir os olhos.
A primeira imagem que me veio foi o teto branco do hospital. Depois os barulhos de aparelhos invadiram meus ouvidos, até que encontrei aqueles olhos verdes. Ela levou minha mão direita até seu peito, num gesto de alívio.
— Como você está? — Ela disse com olhos transbordando de preocupação; até pensei que fosse chorar.
— Bem. — Abri meus lábios ressecados com dificuldade.
— Estava preocupada com você. — Ela me olhou com compaixão. — Dominus poderia ter te matado.
Minha cabeça explodia com perguntas, mas eu só conseguia pensar em beber algo.
— Água. — Balbuciei e ela pegou um copo em cima da mesa, enchendo-o com água fresca. Ela ergueu minha cabeça, pousou o copo em minha boca e senti o líquido deslizar por minha garganta sedenta. — Mais. — Ela me deu água até saciar minha sede. — Quem era ele e por que vocês estavam lá? — Decidi perguntar, assim que ela me acomodou novamente no travesseiro.
— Ah... O Dominus? — Ela fez uma pausa, desviou os olhos dos meus e vasculhou o chão como se procurasse uma resposta. — É um amigo do meu irmão. Ele é... Meio super protetor. — Ela sorriu desconcertada.
Nesse momento, uma enfermeira entrou no quarto, me impedindo de fazer qualquer outra pergunta que eu tivesse em mente.
— E aí, como estamos, garotão? — A enfermeira de meia idade verificou os aparelhos, ajeitou meus travesseiros me colocando um pouco mais sentado. — Pronto pro jantar? — Perguntou ela antes de sair para buscar meu jantar.
Jantar? Quantas horas eu havia dormido? Olhei confuso para Thamy.
— Você dormiu por quase dezenove horas. — Ela sorriu. — Filipe ficou aqui a tarde toda e disse que voltaria.
— Sabe que me deve muito, não é mesmo? — Antes que ela terminasse de falar, Filipe entrava no quarto.
— Sei, cara! Vou te passar todas as gatas da minha lista de contatos. — Brinquei com ele.
— Então já vi que não terei muito com o que me divertir... — Ele riu, depois olhou para Thamy. — Mas, me contendo com essa gatinha aqui.
Filipe se dirigiu até ela e, inclinando-se a sua frente, fez biquinho encenando que iria beijá-la. Thamy riu e desviou dele.
— Agora que não está sozinho, posso ir embora. — Ela depositou um beijo carinhoso em minha testa e acenou para Filipe. — Tchau. — Disse quando já estava próxima a porta.
A enfermeira retornou com um prato que não cheirava nada bem.
— Coma tudo e não faça cara feia! — A enfermeira colocou uma espécie de mesinha a minha frente e depositou o prato sobre ela. Inclinei a cabeça por sobre o prato e pude ver uma sopa sem cor, com legumes cozidos flutuando sobre ela, e alguns temperos que faziam ela ter esse cheiro peculiar.
— Ouviu a moça. Sem cara feia. — Filipe parecia se divertir muito com minha desgraça.
Dei a primeira colherada e senti meu estômago revirar, mas, obediente, comi até a última verdura. A enfermeira tirou o prato e a mesa, aparentemente orgulhosa. Ajeitou-me novamente deitado e confortável, e se foi.
— Pronto, agora que está alimentado, pode me contar onde encontrou aquela garota linda. — Filipe se espreguiçou na cadeira, colocou as mãos atrás da cabeça e me fitou. Contei a ele como a tinha conhecido e tudo o que aconteceu aquele dia.
— Cara, você é gay? Só pode ser... — Ele endireitou-se, indignado. — Uma gata daquelas dorme na sua casa e você não faz nada? Tenho que te dar umas aulas! — Filipe balançou a cabeça negativamente várias vezes.
— O que queria que tivesse feito? Não ia abusar da fragilidade dela. — Tentei me explicar.
— Ela queria um carinho, cara. — Ele passou as mãos nos cabelos. — Você não tem jeito!
Logo, um médico chegou e me explicou sobre minhas fraturas; disse que em alguns dias eu não sentiria mais dores. Tive a sorte de quebrar três costelas e ter o corpo cheio de hematomas, fora isso, eu estava bem.
Três dias se passaram e os médicos me deram alta. Filipe veio me buscar, logo que liguei para ele, e disse que me levava pra casa porém, eu insisti que estava bem e que poderia muito bem dirigir. Coloquei minhas roupas surradas, e agora sujas, e peguei a chave do carro. Recebi as últimas instruções do médico e uma receita com medicamentos para dores e para a cicatrização. Ele me instruiu, ainda, que em quatro dias deveria voltar para retirar as faixas e que poderia ligar caso houvesse algum problema. Agradeci a atenção e eu e Filipe descemos até o carro.
— Não aguentava mais aquela comida! — Reclamei quando entramos no carro.
— Só pelo cheiro eu já estava ficando enjoado... — Filipe brincou.
Fomos o resto do caminho em silêncio. Deixei-o em casa e ele se despediu com um "ligue se precisar". Acenei com a cabeça e dei a partida.
No caminho, passei a mão pelo porta luvas até encontrar meu amuleto que sempre ficava pendurado no pescoço em uma fita de couro. Sabia que não deveria ter saído sem ele.
Meu amuleto era uma chave antiga que ganhei de minha mãe antes dela desaparecer. Um dia ela poderia ter sido dourada, mas agora sua cor se assemelhava a ferrugem, pela idade eu imagino, e pelo fato de sempre ficar junto a minha pele. Não costumo ficar longe dele e sempre lembro de minha mãe o entregando pra mim quando eu tinha dez anos; ela disse que era uma herança de família e que tinha um significado muito importante. Para mim, antes e agora, só se passa de uma chave velha, com entalhes góticos e uma lembrança palpável de minha mãe.
Estacionei na vaga de sempre, tranquei as portas e peguei o elevador. Ao chegar a porta de meu apartamento, vi que algo estava errado. A fechadura fora arrombada. Entrei com cuidado e encontrei tudo revirado; minha televisão estava no chão, minha mesa de centro estava quebrada ao meio, as portas dos armários estavam abertas e seus conteúdos jogados no chão. Andei com cuidado até o corredor, abri a porta de meu quarto e tudo se encontrava do mesmo jeito.
Apertei meu amuleto contra o peito, rezando para que, quem quer que tivesse feito isso, já houvesse ido embora. Mirei todas as minhas roupas espalhadas pelo chão e pela cama e me aproximei da escrivaninha, percebendo que havia um bilhete:
Espero que tenha gostado da nova decoração.
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O Sabor da Perdição
RomanceO primeiro encontro deles, não foi nada comum e previsível, assim como tudo o que ocorreu nos dias que se seguiram. Uma sucessão de acasos, poderíamos dizer, mas, será que seria esse o pensamento correto? Eu não os aconselharia a pensar assim. Seria...