Capítulo 5: Eu poderia não estar vivo até amanhã

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A sensação de seus lábios colados ao meu. Suas mãos pelo meu corpo e o poder de te ter em minhas mãos, valeria até mesmo o sabor da morte ao amanhecer...

— Desde pequeno, meu irmão tinha fascínio pelo nosso pai. Queria fazer e ser igual a ele, e meu pai se aproveitou disso. Envenenou o coração de meu jovem irmão contra a humanidade, e colocou em dúvida a santidade de Deus e dos Arcanjos. Dizia que só estávamos presos nessa terra imunda; palavras dele, porque fomos injustiçados. Os anos se passaram e o ódio de meu irmão só aumentava, enquanto a mim; rejeitada por meu pai por ser a segunda, e ser mulher, recebi todo o carinho e amor de minha mãe, que diferente de dele; achava os humanos, além de delicados e frágeis; de certa forma, angelicais. Me ensinou a cura-los, e ter certo afeto por essas criaturas. Milênios se passaram, meu pai foi capturado e julgado por seus crimes para com os protegidos de Deus. Suas asas foram arrancadas e, o lugar onde elas nasciam em suas costas, foram queimadas a brasa. Para o desprezo de meu pai, sem asas e amaldiçoado ele agora só se passava de um humano, e no ápice de sua loucura ele se matou. Meu irmão irado, jurou aos céus que se vingaria e dês daí, ele vem seguindo a loucura de meu pai. Assim que descobriu a certa, tolerância de minha mãe para com os humanos, ele a matou. Eu o odiei por anos por ter feito aquilo. Depois, viajou pelo mundo a procura de lendas e histórias, sobre um possível objeto, que seria capaz de libertar Lúcifer de seu cativeiro e, trazer a terra todos os seus demônios, para um Apocalipse. Para assim tomariam os céus, terras e fazer o que quisessem, sem julgamento, sem consequências, só por diversão. — Ela inspirou profundamente, passou os dedos pelas têmporas e continuou.

— No início, eu achava isso um erro, mas ele me envenenou também. Me fez crer que era o melhor, e eu o segui por cada canto sem questionar. Li contos dos mais diversos povos e culturas; todos eles se referiam a uma chave, mas nunca a achamos. Não sabemos ao bem se é mesmo uma chave ou se é assim referida, por se tratar de algo que vá abrir as portas do inferno. Na noite em que você me encontrou, eu havia fugido, depois de vê-lo lançar fogo em uma família inteira. — Thamy me fitou, com horror nos olhos.

— Havia três crianças. — Ela se deteve, e levou as mãos a face, cobrindo os olhos. — Ele se tornou tão cruel. Eu as vi queimar, não aguentei aquilo. Tudo pelo fato de que um informante o havia dito, que naquela família estava escondido o que ele procurava, como não encontrou nada; ele ficou enfurecido e matou os inocentes. Ainda me lembro dos gritos deles. — Ela tapou os ouvidos com força.

— Ainda lembro dos pequenos olhos verdes da menininha mais nova, ao me esticar as mãozinhas frágeis a procura de socorro. Eu sabia que deveria ter ajudado, mas o que eu fiz? Eu fugi! — Ela choramingou baixinho, se encolhendo sobre o próprio corpo. Eu me aproximei e acariciei seus ombros. — Meu irmão me acha uma fraca, pois anjos não tem sentimentos, mas eu posso jurar, que meu coração se quebrou naquele instante, com a imagem daquela garotinha. — Ela me olhou e eu enrijeci ao ouvir a palavra Anjo.

— O que você disse? — Falei ao me afastar um pouco dela, com pânico tomando cada parte do meu corpo.

— Disse que senti meu coração despedaçar. — Ela me olhou confusa. — Não é isso que acontece com os humanos quando se entristecem profundamente. — Ela tocou o queixo, pensativa.

Humanos, anjos? As duas palavras ecoavam em minha cabeça.

— Não, o que você disse antes disso. — Encostei as costas na porta.

— Que sou um anjo. — Ela respondeu tranquilamente.

Nesse momento asas negras como a noite surgiram em suas costas e, se abriram preguiçosas para os lados. Penas grosas e macias as recobriram; não pude conter o espanto e levando as mãos a boca, apertei mais meu corpo contra a porta. Ela acariciou as asas e sorriu pra mim, as balançou para a frente e para trás; jogando rajadas fracas de ar sobre mim. Depois flutuou, direcionando o ar para o chão. Seus pés perderam o contato com o solo, e ela rodopiou; com grande graciosidade. Virando de costas para mim; eu não podia conter meu espanto e admiração. Vi por onde as asas se projetavam em suas costas e como a área era mais rosada e parecia mais sensível. Ela riu baixinho se divertindo. Eu levantei-me e dei um passo em sua direção. Em um bater de asas ela se posicionou a minha frente, encolheu as asas, fazendo-as ficarem junto aos seus ombros como uma capa. Eu estiquei os dedos maravilhado com o brilho das penas. Ela esticou um pouco uma das asas e me envolveu com ela, e eu as toquei. As penas eram macias e sedosas, e em um piscar de olhos ela as encolheu e sumiram em suas costas. Sem pensar fui para trás dela e elas haviam sumido; como se nunca estivessem ali. Eu suprimi um gemido de espanto. Teria sido um sonho? Toquei as costas nuas dela e ela se encolheu.

— Como faz isso. — Indaguei, ao passar os dedos pelo lugar onde, antes as asas estavam fixadas.

— Elas se acomodam por dentro da minha pele, para que eu possa andar por vocês sem ser identificada.

Ela se virou, tomou meu rosto nas mãos, e depositou um beijo faminto em meus lábios. Eu arregalei os olhos de espanto, mas logo me entreguei ao momento e os fechei. Puxei sua cintura para mais perto de mim com uma mão, e com a outra puxei sua nuca; entrelaçando os dedos por seu cabelo. Retribui o beijo com igual vontade, deslizei a mão da sua nuca por suas costas e ao tocar as marcas ela gemeu baixinho. Voltei a subir a mão e ela abriu as asas. Só soube disso, pela leve brisa e pela escuridão que se formou ao nosso redor. Thamy se afastou arfando e sorriu pra mim enquanto suas bochechas se coravam. Eu admirei por mais uma vez, suas belas asas; que agora me envolviam, em contraste com sua pele pálida, e retribui o sorriso dela.

— Senho... — Aristeu se interrompeu ao nos ver daquele jeito. Thamy voltou a acomodar as asas em suas costas e, se virou para ele.

— Sim! — Mesmo com a expressão conturbada de Aristeu, Thamy falou tranquilamente.

— Seu irmão ligou, está preocupado com a senhora. — Ele disse gentilmente.

— Você não disse que estamos aqui. Não é? — Seu corpo se enrijeceu, seu tom de voz, soou como uma suplica.

— Ele disse que chega dentro de duas horas. — Sua voz foi baixando, até ser quase um sussurro. Imagino que pelo olhar de Thamy, Aristeu sabia que havia feito algo de errado.

— Droga, droga, droga... — Thamy andou pelo quarto com as mãos na cabeça. — Ele ficará furioso por eu ter te trazido aqui. Não, na verdade irá mata-lo. — Ela me fitou, angustiada. — Vamos, temos que ir.

— Me matar!? —Repeti e engoli em seco.

— Não se preocupe, já teremos partido, antes que eles cheguem aqui. — Ela tentou me confortar, depositou um beijo em meus lábios e desceu, arrastando Aristeu consigo. — Arrume as malas. — Gritou da escada.

— Claro. — Respondi de prontidão.

Juntei as poucas coisas que havíamos tirado da mala, e desci até o carro. Me matar? Meu Deus, como eu havia me metido naquilo. Um pensamento me ocorreu. Ela não explicou porque invadiram minha casa, e será que tinha sido seu irmão? E porque ela havia me beijado tão de repente e tão apaixonadamente? Filipe tinha que saber disso, ri sozinho, além da situação nada propicia. Tudo estava para piorar. Eu poderia não estar vivo até amanhã. Não sabia para onde íamos, meu futuro era incerto, mas teria valido a pena por essa mulher. Meu próprio anjo.

Seja o que for que nos esteja esperando. Eu não tenho mais medo!

O Sabor da PerdiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora