Capítulo 2

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"Nunca nos devemos deixar persuadir senão por evidência da razão."

René Descartes.


Estava frio, um frio que incomodava, logo seguido de um calor infernal, mas o que mais o martirizava era a sede. Sentia uma vontade irresistível de beber água, contudo o corpo não enfraquecia com a falta dela, como seria de se esperar que ocorresse. Apesar da boca seca e do mal-estar que perdurava há muito tempo, continuava em plenas condições físicas, contudo inúteis naquele ambiente hostil.

O lugar, sombrio e escuro, conjurava para tornar tudo muito propício a uma história de filmes de terror. Ele olhava ao redor, na penumbra, e apenas via manchas preto-avermelhadas, algumas movendo-se de forma bem sinistra em um ambiente que era muito aberto e descampado até ao horizonte. Um som baixo, porém perturbador, parecia um zumbido grave lembrando a vinda distante de um bando de insetos esfomeados e com vontade de nos comerem vivos, devorando tudo à sua volta, mostrando que o silêncio não existia de fato. Igor tentou andar, entretanto parecia que estava colado ao solo. Com muito esforço deslocou uma perna e começou a caminhar devagar, procurando ver se estava preso em alguma piscina viscosa, feita de qualquer produto que se assemelhasse a piche. Tentou correr, quando olhou uma sombra negra aproximar-se dele, uma sombra disforme, mas humanoide e assustadora que deu um grito macabro, agudo e irreal; todavia, por mais que tentasse, não lograva sair do lugar. A sombra aproximou-se demasiado rápido e roçou nele, terminando com uma risada estridente e desafinada enquanto Igor sentia no seu toque o hálito frio e assustador da morte.

– Mortos, mortos, mortos, mortos, estão todos mortos e a culpa é minha! – Seus gritos de dor ecoavam pela cabana. – Traga-os de volta, por favor.

Com um safanão no ombro, Igor acordou para ver Ezequiel ao seu lado, abanando-o com uma mão enquanto, com outra, mantinha uma esfera de luz brilhante acima da cabeça.

– Calma, Igor – disse o ancião. – Foi apenas um pesadelo.

Igor ergueu-se, sentando e passando as mãos no rosto todo suado.

– Será que foi de fato um pesadelo? – questionou, levantando-se devagar. Uma luz forte formou-se acima da cabeça dele, feita sem nem mesmo pensar ou mover as mãos. Devagar, Igor caminhou para o sanitário, seguido pela estranha luz, enquanto o velho murmurava, atônito:

– Pelos céus, Saci, ele nem precisa invocar de forma consciente as coisas que deseja. Em dois mil anos jamais vi um ser tão poderoso exceto quando nos conhecemos, mas ainda não me convenci de todo. Contudo, só pode ser ele e agora não há erro. Apenas ele poderia fazer isso, mas mil e oitocentos anos é tempo demais para eu me lembrar com detalhes! – murmurou. O cachorrão olhou para o ancião que sorriu, dizendo. – É sim, precisamos de aguardar os momentos corretos, do contrário teremos o caos. Bem sei que vocês não se esquecem com facilidade.

Ezequiel apagou a esfera de luz que criara para acordar o jovem e voltou a deitar-se na sua cama.

Igor, após enxaguar o rosto, abriu a porta para a rua e sentou-se por algum tempo na varanda, pensando no seu passado desconhecido. O cão foi ao mato aliviar-se e retornou pouco depois, sentando-se ao lado do jovem.

Ao vê-lo parado, olhando para si, afagou-lhe o focinho e Saci encostou-se à sua perna. Igor levantou os olhos para cima, vendo milhares de estrelas a cintilar no firmamento, como se fizessem ritmo com o barulho dos grilos. Voltou a olhar para o cão e, sem esperar resposta, perguntou-lhe com um suspiro:

– O que será que me aconteceu, guri? – levantou-se e retornou para dentro.

Olhou para a esfera de luz, fazendo com que ela se desfizesse em fragmentos, como se a luz fosse um vidro partido em centenas de pedaços, um caleidoscópio luminoso multicolorido. Gostou do efeito e sorriu pela primeira vez, voltando a dormir.

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