Capítulo 3

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Me desculpem por qualquer erro. Culpa do PDF ;)

Na manhã seguinte, abri as cortinas e dei de cara com um corpo seminu em uma espreguiçadeira no quintal da casa vizinha. Afastei-me um pouco da janela e arrisquei mais uma olhada. Vi claramente um torso musculoso com pequenos mamilos castanhos. A pele era surpreendentemente alva. Bem devagar, meus olhos acompanharam uma delicada linha de pêlos escuros que desciam do umbigo à cintura de jeans desbotado. Descendo mais, pararam nas formas que o jeans revelava, no rasgo em um dos joelhos e nos brancos dedos dos pés, que batiam ritmicamente na relva. O rosto estava escondido pelo livro que ele lia. Fiquei ali parada, observando, esperando que ninguém me visse. De vem em quando, ele coçava o peito com uma das mãos ou enxotava uma mosca. A porta se abriu de repente e eu pulei para longe da janela. Ninguém gosta de ser pego nessas situações, não é?
- Tallulah! – falei baixinho com um suspiro de alívio quando a gata entrou no quarto querendo atenção.
Quando olhei de novo, o garoto mudara de posição e, de costas para mim, vestia uma camiseta. Gostei do jeito como seu cabelo preto acompanhava a curva do pescoço. Sorri quando Tallulah começou a me roçar com as patas, miando, irritada. Depois sorri novamente, porque sorrir me parecia estranho. Os meus únicos sorrisos nos últimos tempos eram aqueles inexpressivos e sem alegria, isso quando eu não ria muito alto para dizer “não estou nem aí!”, o que deixava meu rosto e meu coração
em brasas. Tallulah enroscou-se nas minhas pernas, esfregando a cabeça nos meus joelhos para ver se eu lhe dava atenção. Eu estava morta de fome. Ontem, mamãe estava furiosa demais para pensar em me alimentar. Eu sobrevivera à custa de barras de chocolate compradas em restaurantes de beira de estrada. À noite, eu me sentia muito cansada para aceitar o que tia Sarah servira, mas agora seria capaz de comer tudo o que houvesse na geladeira. Olhei mais uma vez pela janela antes de ir para a cozinha. A espreguiçadeira tinha só um livro.
“Mas, Jenna, você não jurou que não teria mais nada com garotos durante pelo menos um ano?”, pensei. Gostar de garotos foi um fator determinante nas encrencas em que Mia e eu nos metemos. Um garoto em particular, mas naquele momento eu não queria pensar em Jackson. Eu nem conseguia olhar para a foto dele, escondida no fundo da minha bolsa. Encontrei Sarah muito à vontade na sala de estar. Ela me disse:
- Tome seu café da manhã.
A cozinha era um pouquinho menos empoeirada do que o resto da casa. Havia vários armários, um fogão engordurado e uma geladeira velha. Quando abri a porta da geladeira, ela fez um barulho estranho, estremeceu. Dentro dela, havia meio litro de leite e um pouco de iogurte, que mais parecia lodo. Minha fome de lobo desapareceu. Havia uma grande prateleira cheia de livros de culinária, mas todos os outros armários estavam vazios. Encontrei uma caixa de cereais e o leite não estava fedendo. Fui comer no quintal. A manhã estava linda e ensolarada, e não seria nada mal espiar o Garoto sarado de um ponto mais estratégico. O quintal também refletia o desleixo de Sarah. O que se via era um emaranhado de ervas daninhas com uma posta de carro enferrujada bem no meio. Sentei-me num banco de madeira manco.
- Que bagunça, não? – disse Sarah, sentando-se a meu lado.
“Sua vida ou o seu jardim?” – pensei, mas disse apenas:
- Kai não é ligado à questão do verde? Os poemas dele não são todos sobre a natureza? Sarah começou a rir bem alto. Estranhei, porque aquele riso não parecia coisa dela. Parecia vir de uma pessoa que gargalha com deboche e vulgaridade, não de minha tia, tão sensível e tranqüila. Em seguida, ela respirou fundo e disse:
- Quer dizer que você pensou que Kai fosse um desses naturebas
Horrorizada, observei aquela gargalhada transformar-se num rio de lágrimas, enquanto ela buscava refúgio em mim. Eu não sabia lidar com aquela situação, e então dei-lhe uns tapinhas nas costas como se ela fosse um grande bebê grotesco. Depois de um silêncio constrangedor, ela disse:
- Kai me deixou.
Fiquei de novo sem ter o que dizer. Isso não era para estar acontecendo. O natural era que Sarah me apoiasse e orientasse. Eu não estava preparada para lidar com os problemas dela. A única coisa que vinha ocupando minha cabeça era tentar descobrir se o rosto do Garoto Sarado era tão bonito quanto seu corpo.
- Faz três semanas que ele me deixou. Disse que precisava de espaço criativo, que minha poesia era superada e sem graça e que se sentia um vegetal cada eu que eu me aproximava. Fiz uma força enorme para não perguntar: “Cenoura ou abobrinha?”, mesmo sabendo que o momento não era para piadas. Seria muito difícil para Sarah perceber o lado engraçado da coisa, pois afinal ela fora insultada pelo homem que amava. Demonstrei solidariedade com um sussurro simpático. Sarah assoou o nariz em um lenço que mais parecia um trapo e disse:
- Ele levou a tevê, o computador e quase todo o nosso dinheiro. O telefone foi cortado, e estou ficando louca só de imaginar onde é que ele pode estar. Tentei demonstrar solidariedade com mais alguns sussurros, embora tivesse de admitir que parte de mim se sentia muito bem ao perceber que eu não era a única pessoa da família a ser rejeitada. Mamãe vivia criticando minhas péssimas escolhas. E ninguém precisava ser Sherlock Holmes para descobrir que Kai não era confiável. Todos aqueles poemas sobre a busca de flores exóticas em florestas tropicais e a adoração de estátuas de deusas nuas não deixavam dúvida do tipo de pessoa que ele era. Continuamos sentadas em silêncio. Tentei não fazer muito barulho ao mastigar meus cereais. De vez em quando, olhava para o jardim da casa ao lado. Concluí que não era o momento de perguntar quem morava ali.Sarah assoou o nariz novamente:
- Não tivemos filhos porque ele disse que isso seria o fim de seu espírito criativo e que dirigir a Sarakai Books já era trampo bastante. Eu adoraria ter tido filhos. Quase consegui convencê-lo uma vez, mas achei melhor respeitar sua criatividade. A arte de Kai vem em primeiro lugar...
Esmaguei os cereais que tinha na boca. O que dizer? Em toda a minha vida, nunca vira um adulto naquela situação. Meu cérebro dava voltas e mais voltas procurando o que dizer, até que me saí com esta:
- Ele tem outra?
Meu pai nos abandonou para ficar com sua assistente pessoal e depois acabou casando com uma bibliotecária chamada – não é piada – Foxy. Foi muito difícil no começo, mas hoje mamãe e papai vivem felizes, cada um a seu modo. Temos duas ceias de Natal. Ninguém saiu perdendo. Sarah sorriu para mim:
- Não. Nada disso! Ele vai voltar. Ele nunca perde o Festival Netherby, onde sempre faz o maior sucesso.
- Que festival? – perguntei.
- Você não ouviu falar do Festival? Sobre o que minha irmã conversa com você? É simplesmente um dos melhores festivais alternativos mais famosos do país. Acontece em agosto, nos jardins do solar Netherby. É maravilhoso! Você precisa ir. Disse qualquer coisa sem o menor entusiasmo. Eu não pretendia ficar tanto tempo ali. Esperava voltar para Londres dali a algumas semanas. Sarah levantou-se e esmurrou o ar:
- Estamos precisando de um pouco de ação! – disse em altos brados. – E para quando? AGORA!
Passamos o resto da manhã podando ervas daninhas. Depois de mais ou menos uma hora, perguntei “por acaso” quem eram as pessoas que viviam na casa ao lado.
- Tenho sorte com vizinhos. Este condomínio foi construído para operários, e por isso as casas são pequenas e geminadas. Seu Gordon mora naquele ali, mas só usa o chalé nos fins de semana. Evie Winthrope mora no outro lado, mas viajou para a África e alugou a casa para alguns estudantes passarem o verão: Freddie e Charlie. Eles são muito legais. A única coisa que levam a sério é sua música. Eles têm uma banda de música anti-folk. Eu nem imaginava o que seria anti-folk, mas deu a entender que sabia muito bem do que se tratava. Fiquei imaginando qual dos dois eu tinha visto: Freddie ou Charlie? Queria me enturmar com eles durante o pouco tempo em que ficaria por ali naquele estranho verão. Lá pelo meio-dia, o sol estava muito forte. Paramos de trabalhar.
- Tem algo mais que eu possa fazer? – perguntei. Sarah passou a mãe pelos
cabelos e disse:
- Você poderia ir a Greater Netherby e abrir a loja para mim. O dinheiro para troco está escondido numa lata de balas sob o balcão, e todos os livros têm o preço marcado. Apareço lá mais tarde. Sábado é meu dia mais corrido – me passou um grande molho de chaves e explicou qual abria o quê. Mamãe nunca me mandava fazer compras sem uma lista e instruções rigorosas para devolver cada centavo do troco. Sarah estava mesmo me pedindo para tomar conta da loja um dia todo? Senti o peso das chaves em minha mãe e não disse nada. Pelo menos, estava sendo levada a sério.

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