Capítulo 16

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Na noite em que Mia disse que me ligaria, fiquei esperando na cabine telefônica, disposta a acertar os ponteiros com ela. O mercado estava incrivelmente movimentado. Carros e vans circulavam sem parar. Portas batiam o tempo todo, desciam pessoas para fazer compras de última hora e voltar às pressas para casa.
Comprei um saquinho de batatas fritas e uma revista e tentei ficar calma. O céu estava nublado, mas o calor insuportável dava até falta de ar. Prendi meus cabelos num rabo-de-cavalo, mas minha cabeça continuava inquieta. Para esticar as pernas, fui até o mercado para por no lixo o saquinho vazio. Mia já devia ter ligado... Havia um grupo de garotos por ali. Identifiquei-os como os escoteiros da barraca de Aurora. Um deles acenou para mim. Eu prometera reservar para ele qualquer revista do Batman que aparecesse na loja.
Hugh Netherby foi o próximo a chegar. Entrou com tudo no estacionamento e saltou de seu velho e acabado Land Rover. Acenou para mim com os dois braços, muito animado. Na verdade, tudo aquilo me fez sentir bem, como se eu já fizesse
parte do lugar.
Quinze minutos depois, fui ver como estava o telefone. Aparentemente, não havia problemas.
Soprava uma brisa, mas o calor continuava forte. Gotas de suor desciam pelas minhas costas.
Ai chegou um carro e o motorista, um homem grandalhão com uma camisa espalhafatosa, desceu e dirigiu-se à cabine telefônica.
Para meu espanto, ele falou ao telefone durante doze minutos. E se Mia tivesse ligado? Será que tentaria de novo? Por que eu mesma não liguei para ela? A idéia
da mãe dela atender me dava calafrios. E eu nem mesmo sabia o que dizer a Mia. Ela estava com a faca e o queijo na mão. Se nossa amizade significasse algo, ela manteria a promessa que me fizera. Eu manteria a minha. E se ela furasse, como
eu poderia revidar? No Maximo, ameaça-la de contar a verdade à minha mãe. Mia ficaria furiosa, e tudo sempre piorava quando ela se enfurecia.
Boa parte do tempo que eu passava com Mia era consumido em tentativas de não irritá-la. Naquele momento, eu percebia isso claramente.
O céu escurecia. Até mesmo uma urbanóide como eu podia pressentir que vinha se formando um grande temporal. A atmosfera quente e úmida estava ficando insuportável. Resolvi esperar mais cinco minutos.
Mia não era totalmente culpada por quere controlar todas as situações. Ela não estava acostumada a ouvir as pessoas lhe dizerem "não". Vivia cercada por pessoas que eram pagas pelos seus pais para dizerem "sim" a todas as suas exigências. Eu também era culpada por ter me submetido a seu controle. Bem, com certeza eu não lhe diria nada sobre Gabe. Receava que, se falasse qualquer coisa, minha confidência traria má sorte para minha relação. Mia arrumaria um jeito de estragar tudo.

Depois de um relâmpago seguido por um trovão, começou a cair um aguaceiro implacável. Atravessei a estrada e corri para dentro da cabine telefônica. Não iria me abrigar no mercado porque poderia perder a ligação de Mia. E eu queria que
ela entendesse, de uma vez por todas, que precisava dizer a verdade.
A chuva fez a temperatura cair no mesmo instante, e comecei a tremer. Uma van branca e barulhenta dobrou a esquina e parou ao lado da cabine. A janela do carro desceu e Charlie pôs a cabeça para fora.
Abri a porta da cabine telefônica:
- Eu estava esperando um telefonema, mas cheguei tarde e perdi a ligação e
estou toda ensopada - menti.
Charlie sorriu:
- Quer carona? Vou passar primeiro no salão de festas para deixar algumas coisas lá. Você pode usar meu celular.

Aceitei a oferta, entrei e sentei ao lado dele, tentando não molhar muito o carro.
- Tem algumas roupas lá trás. Você pode vesti-las quando chegarmos ao salão. Gabe sempre esquece algo no carro - disse ele, rindo.
- Talvez ele esteja acostumado a ter criados cuidando de tudo para ele - respondi.
- Não, no caso de Gabe é porque ele é um cabeça-de-vento mesmo.
- Como vocês se conheceram?
- Num pub em Clerkenwell, em Londres. Estávamos assistindo a umas apresentações de música anti-folk e começamos a conversar. Nós dois éramos fanáticos por Lyle Hasslett e sua banda, a Stale Pumpkins, e então decidimos formar nossa própria banda.
- Não conheço a Stale Pumpkins - falei.
- Vou lhe arrumar um cd. Lyle tem uma voz incrível. Tocamos várias vezes com ele. O nome da nossa banda, Goats in a Spin, vem de uma música dele:
I've put up with your screwball comedy and crackpoat psychology
So that you would stay with me.
Girl, you got me dancing like a goat in a spin
A goat in a spin¹.
Charlie tinha uma voz suave. Quando acabou de cantar ficou vermelho e disse:
- Garotas são um mistério para mim.
- Gostei da música - respondi num tom o menos misterioso possível.
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¹"Tolerei sua comédia ridícula e sua psicologia maluca
Para que você ficasse comigo.
Garota, você me fez dançar como um bode desvairado.
Um bode desvairado."
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Charlie continuou:
- É por isso que a música anti-folk é incrível. O que interessa é a música. Foi Lyle que arrumou uma brecha pra gente tocar no Festivel Netherby. Quando Gabe contou que sua família vivia em Netherby, achamos que seria um lugar fantástico para passar todo o verão. Nossos pais gostaram muito da idéia porque eles costumavam vir ao Festival Netherny. O pai de Gabe disse que cuidaria de nós.

A van entrou no estacionamento vazio do salão de festas.
- Jenna, será que você pode ficar um pouco e me dar uma força? Não estou vendo Freddie em lugar nenhum.
- Tudo bem – respondi. Sarah fora à casa de Julius pesquisar na Internet alguns livros que estavam à venda, o que significava que não voltaria tão cedo. Peguei uma camiseta verde de Gabe e corri para o banheiro.
- Espere aí, em menos de um minuto troco esta blusa molhada pela camiseta de Gabe.
O cheiro de Gabe impregnava a camiseta. Quase todo o equipamento da banda estava guardado num armário na parte de trás do salão de festas. Charlie já começara a pegar as coisas.
- A que horas começa o ensaio? – perguntei.
- Daqui a pouco mais de uma hora, mas achei melhor chegar mais cedo para testar algumas partes do equipamento. Depois que ajeitamos tudo, Charlie começou a verificar o sistema de som.
- Quer testar o microfone pra mim, Jenna? – pediu ele do outro lado do salão.
Soprei o microfone algumas vezes e depois repeti aquilo que sempre vi fazerem nesse tipo de coisa: “Testando, testando, um, dois, três...”
Sentia-me estranha segurando um microfone. A tentação de dizer ou cantar algo era enorme. Lembrei-me de que, quando cantava no coral, fizera uma apresentação solo no concerto de Natal do ano anterior. Quando Charlie foi até a van pela milésima vez, lembrei uma canção que era uma das preferidas da
mamãe, Because the Night, da maravilhosa cantora e poeta punk Patti Smith.
Deixei o acompanhamento por conta da minha imaginação e comecei a cantar. Parecia tão bom quando na ocasião em que eu chorara debaixo na árvore. Soltei a voz e pensei em Gabe.

... Because the night belongs to love... ²

Parei, ri e me curvei diante do público imaginário.
Alguém aplaudiu.
Freddie, Charlie, Gabe e Cleo estavam olhando para mim.
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² "... Porque a noite pertence ao amor... "

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