Era como aquela antiga historia de um homem com duas personalidades, o médico e o monstro. Uma delas é a de um homem bondoso, a outra a de um assassino. Eu me senti assim naquele momento. A diferença é que eu não precisava beber nenhuma poção para me transformar. Bastava ver Gabe. O que eu gostaria mesmo era de um bom papo com mamãe. A gente ficava horas e horas conversando sobre todos, sobre nada. Pensei nela e em Marcus gritando
de alegria numa montanha-russa. Nos últimos tempos, tudo o que eu parecia haver entre nós eram brigas e dias e dias sem nos falar. Eu estava ficando craque nisso: reprimir meus sentimentos até que eles explodissem em lagrimas. Subi direto para meu quarto, me atirei ao travesseiro e chorei. Se alguém me pedisse para dizer por que razão, eu não saberia. Eram meus sentimentos extrapolando meu corpo novamente, especialmente por terem zombado de mim em público.
O que estava havendo comigo? Eu tinha a impressão de que não havia lugar no mundo para mim. Era incompetente na escola, e a amizade de Mia sempre me fazia sentir uma inútil, como se eu não servisse para nada. Eu queria ser capaz de
enfrentar o mundo sozinha, mas não sabia como!
Uma pancadinha na janela me assustou. Quando afastei a cortina e abri a janela, precisei desviar de uma pedra que vinha em minha direção.
- Já trocou a areia da gata?
- Já – sussurrei, rindo de minha resposta a Gabe e me sentindo como uma absurda Julieta.
- Vamos dar uma volta. A noite está linda. Espero você lá fora – ele disse isso e pulou a cerca de madeira.
Meu primeiro impulso foi recusar o convite, mas desde quando eu me deixava levar por meus primeiros impulsos? Lavei o rosto com água fria, vesti-me, respirei fundo e saí.
Gabe estava sentado no muro da casa ao lado. Um som suave e distante de
musica vinha da casa de Charlie. As pernas de Gabe acompanhavam o ritmo. Saímos, em silencio durante algum tempo, até que Gabe disse:
- Desculpe minha piadinha boba sobre os doughnuts. Juro que não volto a
mencionar essa palavra, mas preciso dizer que fiquei muito impressionado com sua habilidade naquela brincadeira.
Percebia suavidade e delicadeza de seu tom.
- Desculpe minha desculpa de “trocar a areia da gata” - respondi, Gabe riu.
- Essa foi boa. Você não precisou pensar duas vezes ante de inventá-la. Em geral, só acho uma resposta boa para esse tipo de situação depois que as coisas aconteceram.
- Eu também.
A noite estava linda, uma meia-lua iluminava o céu.
- Onde moro nunca é escuro ou silencioso – falei.
- Faço faculdade lá. Sente falta de Londres? – perguntou Gabe, sentando sobre uma árvore. Continuei de pé, com meu corpo encostado no tronco.
- Não sei se sinto falta. O problema são as pessoas de lá. Elas parecem mais
reais quando você as deixa. Ou talvez a gente só consiga entender o que sente quando está longe.
Gabe recostou-se no outro lado do tronco.
- E quais são os seus sentimentos em relação as pessoas que deixou?
- Confusos. Às vezes, sinto falta, às vezes, acho que é um alivio estar longe. Isso me dá espaço para pensar – respondi, sentindo que o cotovelo de Gabe e o meu se tocavam.
Afastei meu braço lentamente e passei a mão pela casca da árvore.
- O que é musica anti-folk? Já estou cansada de fingir que sei do que se trata – falei rindo, Gabe sorriu.- É mais fácil lhe dizer o que não é musica anti-folk. É uma reação à música pop fabricada.
Fiz que estava entendendo:
- Todas essas bandas de garotos e garotas, essa coisa de ídolos pop, tudo isso é um grande pé no saco.
- É tudo muito artificial. Dizem a eles o que vestir, como cantar, o que dizer em entrevistas. Como se nenhum deles tivesse opinião própria. Ninguém canta o que interessa – ele olhou para o relógio e me pegou pelo braço – Vamos, ainda dá tempo...
- Eu não... – comecei a dizer antes que ele me arrastasse.
Descemos correndo uma colina, passamos por um campo aberto e chegamos a um cemitério. Ali, paramos. Parecia que meus pulmões iam explodir, e meu coração queria saltar do peito.
Gabe passou o braço sobre meu ombro no momento em que o sino da torre começou a badalar. Contamos seis badaladas surdas.
- Tem alguém lá dentro? – perguntei, ainda prendendo a respiração.
- O vigário precisa ficar aí a noite inteira para tocar o sino.
- Me engana que eu gosto! – respondi. E então vi a expressão o rosto de Gabe.
Ele riu:
- Criatura urbanóide.
- Bicho do mato.
- Patricinha de shopping center.
- Abraçador de árvores.
- Abraçador de Jenna! – Gabe se aproximou e me abraçou com força. Eu podia sentir sua respiração no meu rosto. Ficamos muito tempo ali parados, em silencio.
- Jenna!
- Gabe!
- Ele riu:
- Vamos fazer isso outra vez amanha à noite. Sem dizer nada a ninguém. Vai ser como se fosse um jogo só nosso. Quando os outros estão por perto, as coisas se complicam. Me encontre por volta das nove da noite.
- Vou ver se dou um jeito – respondi vagamente, mesmo sabendo, com certeza absoluta que, acontecesse o que acontecesse, estaria lá as nove em ponto. Gabe me deu a mão e voltamos em silencio para a casa de Sarah.
- A gente se vê amanha – disse ele quando chegamos.
Sarah voltou na manhã seguinte. Depois de fazer um estardalhaço com Tallulah, voltou-se para mim:
- Sinto muito tê-la deixado sozinha. Mas eu precisava ir.
- Pensei que tivesse ido comprar livros.
Sarah ficou um pouco encabulada:
- Ah sim, comprei alguns. Tudo bem por aqui?
- Ava fez umas comidas legais. Fui ao clube da juventude e Aurora convidou-me para um chá hoje... Kai apareceu.
O rosto de Sarah encheu-se de esperança, e acrescentei rapidamente:
- Só passou para pegar algumas coisas.
- E deixou algum recado? – perguntou Sarah com uma voz fraquinha.
- Disse apenas que estará de volta para o festival – tentei falar do jeito mais neutro possível, como seu eu não soubesse que aquilo deixaria Sarah muito magoada.
Ninguém gosta que sintam pena de si, não é?
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Soul Love
RomanceJenna não quer trair os amigos e não revelará o que se esconde por trás de sua expulsão do colégio, assumindo toda a culpa sozinha. Como castigo sua mãe a levou para passar algum tempo com uma tia numa tediosa cidadezinha do interior. É lá que Jenn...