Capítulo 14

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Aurora me assustara. Só em filmes de terror eu tinha ouvido uma expressão tão intensa de aversão. Foi chocante encontrar uma criança que odiava tanto uma morta. Talvez Lavinya tivesse enlouquecido. Ouvi dizer que muitos aristocratas enlouquecem, e então ela teria magoado o filho. Não seria fácil tocar no assunto com Gabe.
Sentamo-nos ao redor de uma grande mesa na cozinha. Aurora não parecia perturbada por sua explosão, mas falou pouco enquanto comíamos. Por sorte, eu estava às voltas com um cogumelo imenso, e isso me manteve ocupada. Nem sinal de Gabe.
A porta rangeu e entrou uma figura alta e magra. Usava as calças mais surradas e sujas que eu já vira.
Aurora olhou para ele com ar de reprovação.
- Onde esteve até agora, papai? Jenna veio tomar chá conosco.
Ele piscou para mim e a beijou:
- Sinto muito, Button, mas o carro enguiçou outra vez.
- Que droga! – resmungou Aurora. – E ainda por cima está chovendo.
- Não tenho culpa. Além disso, tive um acesso de cãibras pela manhã. Acho que os deuses pensaram que meu andar torto era uma dança da chuva – e começou a rir.
Aurora deu um murro na mesa, o que fez um dos meus cogumelos voar longe.
- Se é esse o caso, agora trate de fazer uma dança do sol para nós!
Sem vacilar um segundo, lorde Netherby pegou uma panela amarela e começou a dançar pela cozinha. Isobel pegou uma lanterna e começou a acendê-la e apagá-la.
- Que brilhe o sol! – cantava ela. Hugh Netherby juntou-se a ela, cantando:
- Que brilhe! Que brilhe! – E todos dançavam pela cozinha.
Era uma “família de doidos” muito engraçada. Lembrei-me de nossa musica “Chocolate já!”. Mamãe, Marcus e eu a inventamos e cantávamos sempre que nos sentíamos famintos, cansados ou infelizes. Um trovão ribombou, seguido por uma forte pancada de chuva, que fez um frio gélido atravessar a cozinha.
- Você está fazendo tudo errado – reclamou Aurora.
- Não tem problema – eu disse. – É só fazer a dança ao contrário.
- Grande idéia! – gritou Hugh, girando a panela na direção contrária e cantando:
- Sol o brilhe que!
Por incrível que pareça, a chuva diminuiu um pouco e todos nos alegramos.
Ouvimos o som de um carro estacionando lá fora. Seria Gabe finalmente? Não.
Era a sra. MacLean, da farmácia.
- Vim trazer os remédios – disse ela. Ao me ver ali ficou um pouco confusa e disse:
- E mais algumas coisinhas que você encomendou – colocou a sacola no hall de entrada e saiu rapidamente.
Quando terminamos de comer, Hugh ofereceu-se para fazer um café, que
demorou horas para ficar pronto, pois ele resolveu prepará-lo à maneira etíope.
Torrou alguns grãos de café em algo que parecia uma lata velha com alça. Todos
tivemos de aspirar aquele aroma. Depois, desapareceu por um tempão até voltar com uma estranha garrafa preta e almas xícaras bem pequenas numa bandeja.
Serviu a cada um de nós um líquido grosso e negro que tinha gosta de alcaçuz.
- Cardamomo – disse Isabel. – É bom para a digestão.
O café não era ruim e tomei outra xícara. Aurora pegou um velho jogo de damas pra gente jogar. Passaram-se mais trinta minutos, até que a porta se abriu e Gabe entrou.
Ele não me viu logo de cara. Tirou as botas. Seu cabelo estava molhado e gotas de chuva escorriam-lhe pelo rosto. Ele pegou a sacola de remédios e mal olhou pra mim.
Depois entrou na cozinha, pôs a chaleira no fogo e preparou algo para beber, sempre de costas. O colete que usava estava encharcado. Dava pra sentir o cheiro de fibras de lã e do corpo dele à medida que foi se aquecendo com o calor
da cozinha.
- Você está atrasado – disse Isobel em tom de censura. – A comida já esfriou, e temos uma convidada.
Gabe enfiou na boca o último pedaço de quiche e resmungou algo coisa do tipo: “estava ocupado”
Será que se atrasara de propósito, porque sabia que eu estava ali? Engoli o resto do meu café. Alguns grãos grudaram na minha garganta como areia.
Quando ele chegou à porta, seus olhos encontraram os meus:
- Olá – disse, num tom de voz de alguém que nem soubesse meu nome nem estivesse interessado.
Perdi as três partidas seguintes. Não conseguia entender o que estava
acontecendo. Sabia que ele preferia manter segredo, mas sua frieza ia muito além disso.
Aurora interrompeu o jogo e perguntou:
- Sarah vai fazer de novo seu jogo de tômbola com poesia no festival?
- Espero que sim – respondi.
- Estou pensando em armar minha barraca de doughnuts. Posso ganhar uma boa grana. – Os olhos de Aurora se iluminaram:
- E Gabe vai tocar.
- Negócios de família – disse Hugh Netherby esfregando as mãos.
- É provável que na época do festival eu já tenha voltado para Londres – falei, lamentando já não ter voltado.

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