Capítulo 4

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Me desculpem por qualquer erro. Culpa do PDF ;)

Greater Netherby ficava a mais ou menos dez minutos de caminhada de Little Netherby. Ali só havia um brechó beneficente, uma lanchonete, uma farmácia, um salão de beleza e o sebo, que ficava na esquina da parte mais baixa da rua e tinha uma pequena tabuleta onde se lia: Sebo Sarakai. Era tão, mas tão pequena, que bastava piscar para perdê-la de vista. Tentei descobrir quais eram as chaves certas, procurando lembrar as instruções de Sarah. Enquanto tentava abrir a porta, senti uma sensação desagradável na nuca, como se cem pares de olhos me observassem. A cortina do salão de
beleza, que ficava do outro lado da rua, fez um movimento brusco, e duas velhas senhoras saíram do brechó beneficente, me espiaram longamente e deram meia-volta. Bem diferente de Londres, onde ninguém se interessa pelo que você faz. Em Greater Netherby, uma estranha abrindo um sebo era uma novidade quentíssima. Afastei um calço para conseguir entrar. A loja era muito maior do que parecia por fora. Havia um balcão à esquerda da entrada, e atrás ficava um pequeno espaço que funcionava como escritório. Do outro lado do balcão, a loja se transformava numa floresta de prateleiras que parecia estender-se por quilômetros. Ao lado de uma das estantes, ficava um armário. O lugar era tão empoeirado que, em comparação, fazia o chalé de Sarah parecer um centro cirúrgico. Comecei a tossir. Aquele não era um lugar onde quem tem alergia a pó ou nervos delicados pudesse trabalhar. As prateleiras mal pregadas rangiam sob o peso dos livros. Dava a impressão de que bastaria um movimento em falso ou um espirro para tudo desabar. O único objeto sem poeira era um pôster novinho, que anunciava o Festival Netherby em agosto. Dei uma olhada e vi que umas bandas bem legais viriam tocar. Quando fui procurar o dinheiro para troco encontrei uma caixa com discos velhos na qual estava escrito: Propriedade pessoal de Kai. VENDA PROIBIDA. Dei um chute na caixa. Como ele se atrevia a dizer que se sentia um vegetal sempre que Sarah se aproximava?! Isso era ridículo, partindo de um homem que se transformava num sapo lascivo sempre que qualquer coisa remotamente feminina chegava perto dele. Recolhi uma montanha de correspondência e dei uma olhada no escritório. Bastou um único olhar para ver tudo. Havia uma caixa registradora, um computador velho, um rádio em péssimo estado e uma cadeira aos pedaços sobre a qual ficava uma almofada de veludo cheia de pêlo de gato. Havia ainda um velho telefone que não dava linha. O rádio, pelo menos, funcionava. Liguei-o e procurei uma estação que tocasse rythm-and-blues. Tirei a almofada da cadeira, sentei e comecei a girar ao ritmo da música. Ao girar pela segunda vez, dei de cara com um par de costeletas brancas e olhos lacrimosos olhando para mim.
- Você é nova por aqui – disse seu Costeletas. Sem pensar, respondi:
- E você, antigo.
Ele explodiu numa gargalhada e disse:
- Touché! – em seguida, levantou a mão:
- Julius Lawrence, a seu dispor! Todos me chamam de Julius.

Sou Jenna – respondi, olhando-o atentamente.
Julius continuou a sorrir e a falar alto:
- Ah, Jenna, a garota dos olhos verdes! Este estabelecimento foi meu até eu me aposentar. Na minha época, era a Livros Antigos Julius Lawrence. Sua
especialidade eram livros de arte e fotografia – acariciou as tiras de uma velha máquina fotográfica que trazia ao pescoço e continuou: - Muitas luas atrás, eu me considerava um bom fotógrafo. Agora, como um velho e fiel labrador, volto sempre a meu velho terreno de caça. A livraria acabou sendo um lugar muito útil desde que fecharam a biblioteca. Aliás, tem correspondência embaixo da porta. Segui seu olhar até um envelope pardo e amarrotado, preso no vão da porta.
- Acho que foi por isso que eu não vi você chegar – respondi.
Ele foi até uma prateleira e pegou um livro. Depois, sentou-se na poltrona e disse:
- Não se importe comigo. Sou aquilo que chamam de “fauna local”.
Aumentei o volume do rádio e tentei ignorá-lo. Embora não admitisse, na verdade eu estava contente em ter companhia. Gostava de ser tratada como adulta, mas era apavorante ficar com uma loja inteira sob meus cuidados, ainda mais um sebo empoeirado de nome vulgar. Julius falou do fundo da loja:
- Sarah sempre liga na Rádio 4 bem baixinho. A música pode ter um efeito muito perturbador quando alguém está tentando mergulhar num livro.
- Você conhece o velho ditado, Julius – gritei para ele, baixando-me para ligar o computador (queria mandar um e-mail para Mia e outro para Jackson) –: “A música tem encantos que domesticam a besta selvagem”.
Acima de mim, uma voz encorpada disse:
- Peito! É peito.
Tirei a cabeça de debaixo da mesa e me peguei olhando para uma conhecida camiseta desbotada. Rapidamente, enfiei a cabeça outra vez embaixo da mesa.
- É peito, sim – disse, lutando para afugentar delírios com aquele peito nu. Depois, bati a cabeça quando tentei tirá-la de debaixo da mesa, e ainda por cima enrosquei-a toda numa teia de aranha que estava ali, a minha espera. Quando finalmente consegui me levantar, ele fora até uma estante pegar um livro, que passou para mim:
- “A música tem encantos que acalmam o peito mais sofredor” – disse ele, depois deu meia-volta e saiu da loja, deixando-me com o livro de citações e teias de aranha me enfeitando o cabelo. Esta não foi a mais feliz das apresentações. Além do mais, eu ainda não conseguira vê-lo direito, isto é, ainda não o vira sem um livro diante do rosto. Tirei o envelope preso no vão da porta. Não queria mais saber de visitas inesperadas. Para manter-me ocupada, peguei um pincel atômico de uma caixa sob o balcão e, no cartaz onde estava escrito Visitantes são bem-vindos, acrescentei, De preferência, que comprem! Depois me joguei numa cadeira e tentei relaxar.
Cerca de meia hora depois, a campainha acabou com minha paz.
- Os sinos! Os sinos! – Julius fez uma péssima imitação do Corcunda de Notre-Dame, achando-se muito engraçado, e eu me vi diante de uma velha senhora que acabara de entrar. Com seus cabelos cor de púrpura e lábios vermelhos brilhantes, parecia saída de um daqueles antigos filmes de terror. Ela jogou uma pilha de livros no balcão, olhou para meu cartaz e disse: Eu também prefiro compradores. E veja que no salão de beleza onde trabalho aparecem bem mais desocupados.
- Não estou comprando hoje – disse, olhando atravessado para a pilha de livros. Eu ainda não aprendera a usar a caixa registradora, nem mesmo sabia se estava autorizada a comprar livros.
- Ah, não? Bem, acredito que você conheça bem o seu ramo. – Ela foi até uma prateleira e começou a folhear alguns livros surrados. Julius olhou para ela:
- Esta é Ava, freqüentadora assídua.
Ava empertigou-se:
- Sou perfeitamente capaz de me apresentar sem ajuda de terceiros, caro Julius – e, dizendo isso, revirou os olhos:
- Espero que Sarah já lhe tenha falado sobre os Românticos Radicais.
- L’amour, toujours l’amour! - disse Julius efusivamente. Ava continuava olhando para mim à espera de uma resposta:
- Os Românticos Radicais – repetiu bem lentamente, como se eu fosse uma débil mental. – Sarah deve ter-lhe falado sobre nós.
- Não exatamente – resmunguei. – Acabo de chegar.
- Temos um acordo. Pomos nossos livros românticos para circular pelo vilarejo e na loja. Se algum exemplar for vendido, o dinheiro fica com Sarah. Num movimento rápido, ela substituiu os livros da prateleira pelos que trouxera e enfiou os outros numa bolsa. Também deixou um embrulho sobre o balcão.
- Eu trouxe essas coisas para Sarah. Ela está melhor? Sarah precisa comer. Desilusão amorosa é terrível.
Ao curvar o corpo, chegou tão perto de mim que pude sentir seu hálito de hortelã.
Ela me pegou pelo braço, dizendo:
- Veja bem, nunca confiei muito naquele tal de Kai. Ele tem um olhar errante e uma panturrilha muito bem desenhada. Acrescente-se a isso uma parelha de versos rimados e verá que a combinação é letal.
- As pessoas dizem que tenho boas pernas – interrompeu Julius. Ficou de pé, dobrou e subiu a barra das calças.
Ava continuou:
- Não posso jogar conversa fora. Muitas cabeças para lavar. - Saiu da loja rebolando em sua saia justa. Julius não tirou os olhos de cada
movimento dela e exclamou:
- Caramba, que mulher!
Mais uma hora se passou, e eu ainda lutava para ligar o computador quando Julius se levantou e se espreguiçou:
- Quer tomar chá da tarde comigo?
- Não, obrigada. Vou ver Sarah. A essa hora, ela já devia estar aqui - respondi. Eu não estava nem um pouco disposta a tomar chá com um fóssil.
- Depois do chá, passo por aqui e dou uma olhada na loja para você. Tenho as chaves daqui – disse ele.
Depois que Julius saiu, dei uma espiada no embrulho que Ava deixara. Havia dentro um sanduíche de cheiro irresistível. Arranquei um pedaço, comi-o gulosamente e fui ver Sarah. No caminho, dei uma espiada na lanchonete. Esperava que fosse uma daquelas casas agitadíssimas, com papel de parede com ilustrações ousadas e toalhas de mesa rendadas, mas só vi mesas de pinho sem adornos e acesso à Internet. Era um lugar que valia a pena conhecer. Parei um pouco e vi Julius sentado na janela, acenando para mim e conversando com o Garoto Sarado.
Quando eu ia fugir dali, o garoto voltou a cabeça e, por uma fração de segundos, seus olhos encontraram os meus. Foi como se alguém enfiasse uma pedra de gelo em minhas costas. Baixei o olhar e segui rapidamente meu caminho. Minha cabeça fervilhava. Por que cargas d’água eu reagira daquele jeito? Por que
dissera que iria atrás de Sarah em vez de ir tomar chá com Julius? Se não tivesse feito essa besteira, já teria sido apresentada ao Garoto Sarado. Mas, afinal de contas, por que aquele garoto mexia tanto comigo? Era bem provável que ele tratasse as garotas como bichinhos de estimação, como Jackson fazia, para depois dar o fora.
Uma coisa era certa. Eu teria de tirá-lo definitivamente da minha cabeça porque eu, Jenna Hudson, tinha o incrível talento de fazer sempre a escolha errada.

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