Capítulo 15

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Minha cabeça fervilhava. Como Gabe se atrevia a me ignorar daquele jeito? Talvez fosse uma dessas grosserias típicas de aristocratas, mas eu não deixaria barato. Principalmente porque partira de alguém que dizia gostar de mim. Sarah e eu estávamos na sala de visitas. Eu não parava de olhar para o relógio.
Às cinco para as nove, Sarah disse roendo as unhas:
- Kai sabia o quanto aquele vaso significava pra mim. Chegou até a escrever um poema sobre ele!
Perguntei se ele ganhava algum dinheiro com poemas. Sarah riu, como se eu fosse uma garotinha de três anos perguntando se a lua era
feita de queijo.
- Kai não é materialista. Ele se dedica à arte. A gente sobrevive com pouco. E dá pra ganhar algum no festival.
- Com uma tômbola de poesia?
- Não, a grana melhor vem da barraca de comida. Vou fazer uns enroladinhos de legumes que chamarei de “comidinha para a alma”. Olhei para o relogio e disse, como quem não quer nada:
- Vou dar uma volta.
Sarah levantou-se:
- Ótima idéia! Vou com você.
- É que tenho um encontro.
- Seria, por acaso, com um dos vizinhos?
Fiz que sim. Quando vi Gabe pela primeira vez, ele estava na casa dos vizinhos.
Era uma quase verdade.
- Eu sabia! Mas não chegue tarde. E agasalhe-se bem.
Minha tia era uma romântica incorrigível. “ Aprenda com ela, Jenna”, disse a mim mesma. “Não se deixe levar por Gabe.” Talvez fosse muito positivo o fato de Sarah não ter tido filhos. Minha mãe jamais me deixaria por os pés na rua àquela hora da noite.
Quando me levantei, de repente comecei a me questionar. Em primeiro lugar, o que eu pretendia com aquele encontro? Depois do jeito como ele me tratou, era perfeitamente possível que nem estivesse lá fora, e eu teria de me esconder em algum canto escuro por uma hora ou mais para salvar as aparências antes de
voltar. Ou quem sabe ele estaria ali, ansioso por minha chegada, cheio de explicações e desculpas esfarrapadas, tentando me beijar.
Minha cabeça zunia quando saí de casa e fui para o lugar combinado.
Ele estava à minha espera. Estendeu as mãos e sussurrou:
- Sinto muito por meu comportamento hoje à tarde. Sou um fiasco em público.
Caminhamos em silêncio pelo campo aberto, na direção da casa da árvore de Aurora. Então resolvi dizer algumas coisas:
- Sua casa não é exatamente pública. O salão da cidade é. O mercado também.
- Gosto do jeito como sua boca se movimenta quando você diz “pública”.
- Um simples sorriso e um olá teriam sido tão difíceis assim?
- Sim. Quero conhecer você sem qualquer tipo de pressão. E aí, a quiche de cogumelos estava boa? Achei-a um pouco esponjosa.
- Você me lembra um cogumelo silvestre.
- Porque sou selvagem e gostoso?
- Porque ninguém o vê durante o dia, e à noite você surge do nada, seu cogumelo!
Já estávamos rindo, mais descontraídos. É difícil odiar alguém que nos faz rir.
Gabe suspirou:
- Não gosto que papai e Isobel saibam de todas as minhas jogadas.
- Quer dizer que encontrar-se comigo é uma jogada?
Gabe deu uma resposta dolorosa:
- Pode ser.
Sentei na grama.
- Estou vendo como é um saco morar num lugar onde todos sabem o que é que você pretende fazer da sua vida.
- Pensam que sabem – corrigiu Gabe. – Odeio quando essa gente cria hipóteses sobre quem você é.
Lembrei-me de Sarah, do vaso e da rapidez com que ela me julgara. O mesmo acontecera na escola e com a mãe de Mia. Todos jogaram a culpa em mim.
- Deve ser difícil viver em uma cidadezinha assim. Gabe, prometo que nunca vou criar hipóteses a seu respeito.
- Isso é muito importante pra mim, Jenna – a voz dele tremeu quando ele falou.
Olhei para o alto. A noite estava clara e cheia de estrelas, como se alguém tivesse jogado purpurina sobre um fundo azul-marinho.
- Podemos continuar nos encontrando á noite? Ir devagar com as coisas e mantê-las em segredo? Podemos ter um tempo só nosso, Jenna? – disse Gabe baixinho.
Ele estava encostado em uma árvore e olhava as estrelas.
Resolvi ignorar todas as duvidas que tomavam conta de mim e rasguei
mentalmente o interrogatório que pretendia fazer. Gabe era um risco que decidi correr.
- Tudo bem! Teremos um tempo só nosso – respondi.
Gabe gritou de alegria e se pôs a correr em volta da árvore.
- Quer dizer que algum dia você vai ser lorde Netherby? – perguntei, fazendo uma reverência.
Ele estendeu uma das mãos para me pegar:
- Talvez. E você, gostaria de ser minha lady?
Não deixei que ele me pegasse:
- Pensei que já fosse...
Gabe se aproximou e acariciou meus cabelos:
- Uma lady com cabelos da cor de pêlo de raposa.
- Mas as pessoas matam raposas por aqui, não?
- Só se elas não se comportarem direito.
Ele acariciou meus cabelos novamente. Fiz o mesmo com os dele e saí correndo.
Ele demorou muito a me alcançar e, quando conseguiu estava quase sem
respiração.
- Talvez seja uma boa fazer ginástica três vezes por semana – ri enquanto Gabe, sentado num banco, esperava a respiração normalizar.
- Tive um problema de saúde na semana passada. Como você deve saber, nós, aristocratas, somos criaturas frágeis.
Sentei-me ao lado de Gabe. Ele passou o braço pelo meu ombro.
- Sei, sim. Ir à farmácia é coisa de gente comum. A sra. MacLean faz as entregas pessoalmente na sua casa! – brinquei.
Ele não respondeu com nenhuma brincadeira, como pensei que fosse fazer. Senti seu braço ficar tenso, e a atmosfera entre nós mudou.
Depois de um longo e constrangedor silêncio, levantei e disse:
- Acho bom voltar pra casa.
Gabe me puxou para o banco:
- Fique mais um pouco. A noite está tão linda.
Sentei-me de novo. Havia no ar um cheiro fresco e gostoso, como de roupa recém-lavada. Não o cheiro de poluição do ar de Londres.
- Aqui tem muito mais céu – falei. – A gente não se sente tão pequena...
- Platão diz que a astronomia força a alma a olhar para o alto e nos leva de um mundo para outro.
- E eu que pensava que as estrelas fossem coisas pequenas e cintilantes!
- São muito mais que isso. Em primeiro lugar, elas têm cores diferentes.
- Para mim, todas parecem cor de prata.
- Se você olhar pelo telescópio, verá que algumas são cor de laranja, outras amarelas ou vermelhas, dependendo da temperatura de sua superfície.
Gabe olhou para mim:
- Isso está lhe parecendo conversa de nerd? Até para mim soou como coisa de quem gosta de parecer inteligente...
Estendi-lhe a mão:
- Vamos lá, seu molenga. Pegue minha mão e trate de levantar daí.
Fiz força como um desses halterofilistas que levantam caminhões. Ele forçou o
corpo para continuar sentado. Quando já estava quase de pé, relaxou e caiu sobre mim. Instintivamente, estendi as mãos e, quando vi, estávamos num abraço
desajeitado.
- Desculpe meu movimento desastrado – disse ele.
- Parece uma maria-mole – respondi, feliz com a sensação do rosto dele quase colado ao meu.
O som do bip do relógio de Gabe quebrou o encanto. Numa mudança rápida de sonho para realidade, ele disse:
- Preciso ir. Na mesma hora amanhã?
Fiz que sim e suspirei:
- Já é hora de voltarmos. Até Sarah deve estar achando que já é muito tarde.
Era como se estivéssemos sobrevoando a superfície um do outro. Eu tinha a sensação de que estávamos omitindo coisas que gostaríamos de dizer. De repente, me senti envergonhada. Quando Mia ligasse amanhã, eu a colocaria
contra a parede para fazer a coisa certa. Se Gabe ficasse sabendo por que eu estava ali, o que pensaria de mim?


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