Eu estava apavorado. Fazia dois dias que Rebecca apagara e ninguém sabia o motivo, achavam que o desmaio havia sido ocasionado pela falta de alimentos que ela tivera durante nossa estadia na floresta. Davam-lhe água e comidas pastosas, ela engolia mas não sabia que estava engolindo, nem sentia o gosto. Aos poucos sua aparência começou a melhorar, as bochechas ficaram mais coradas e aparentes, as olheiras diminuíram. Aos poucos ela foi voltando a ser a Rebecca original, e não uma garota raquítica e quase morta por inanição. Então, dois dias depois de apagar, ela finalmente acordou. E só foram me avisar horas depois, disseram que era para não "exaltar as emoções" de Rebecca. Eu saíra da enfermaria um dia antes de ela acordar, disseram que eu teria de ficar dois ou três dias, mas só precisei de um para me recuperar por completo. Durante este dia eu passei boa parte do tempo ao lado da cama de Rebecca, lendo um livro mesmo sabendo que ela não escutava. Havia um garoto bonito deitado na cama ao lado da dela, que ouvia a história disfarçadamente. Quando as enfermeiras pediam para mim sair um pouco e descansar, eu ia passear entre as plantações de tubérculos e cereais, ajudei os homens na colheita e na hora de selecionar os vegetais bons e os ruins. Ser o príncipe não mudava nada na forma como as pessoas me tratavam, e isso de certa forma era bom, pois fazia me sentir uma pessoa comum e feliz. Trabalhar também era bom, podia ser cansativo e causar um pouco de dor, mas as sensações de tarefa cumprida e de ser útil eram ótimas. Eu pretendia trabalhar durante todos os outros dias que estivesse ali. Meu corte no tórax já cicatrizara quase completamente, deixando apenas um vergão vermelho no local.
* * *
Fui ao encontro de Rebecca assim que me avisaram que ela acordara. Eu estava comendo uma batata doce e literalmente joguei ela em cima da mesa para sair correndo. Quem me avisou foi Angelina, que parecia feliz por mim e por Rebecca. Quando cheguei lá, ela estava conversando com o garoto ao lado, eles soltavam risadas e sorriam. Fiquei feliz por ela ter alguém com quer falar enquanto eu não estava ali. Fui correndo abraçá-la e ela sorriu muito contente para mim, estava com uma aparência mais saudável e feliz. Cumprimentei o garoto brevemente, ele fez o mesmo. Então me lembrei de uma coisa: eu tinha um livro, de poesias, no bolso interno do casaco de pele. Entreguei a ele em forma de agradecimento. Me voltei a Rebecca e pedi que me contasse o que havia acontecido. Ela hesitou um pouco mas respondeu:-Eu senti uma tontura e uma náusea, acompanhadas de muita dor de cabeça. Em seguida, não vi mais nada, foi quando desmaiei. Sonhei que estava em um pântano navegando num rio lodoso. Amelia Dickens apareceu atrás de mim na canoa, mas ela estava... Diferente.
-Diferente como?- Pressionei.
-Os olhos estavam completamente brancos, e a voz não parecia dela.- Fez uma cara de nojo- Então ela começou a vomitar líquidos estranhos e...
-E?
-E ela disse... que eu não iria escapar desta vez.
Meu coração gelou.-Estranho... mas foi só um sonho? Não é?
-Eles não sabem ao certo o que foi, Cristopher. Mas não foi só um sonho. Gust também teve uma experiência parecida.
-Gust? Quem é Gust?
-Eu sou Gust.- Disse o garoto ao lado.
Assenti.-E as enfermeiras? Dizem o que?- Perguntei.
-Nada. Elas sabem tanto quanto nós todos.
Uma enfermeira vem trazer uma bandeja de comida para Rebecca.-Rebecca precisa se alimentar.- Disse ela.- Seria prudente que o senhores parassem de conversar um pouco, alteza.
-Claro.- Respondo.
Rebecca apanha uma batata com salsa e come com voracidade. Eu rio.-O que foi?- Pergunta ela, de boca cheia.
-Estava com saudade de seu apetite voraz.- Respondo.
Ela me joga um pedaço de cenoura. Nós dois rimos. Então de repente ela bota a cabeça para fora da cama e vomita tudo o que acabara de comer. Eu me assusto e chamo uma enfermeira. Ela traz uma bacia de metal e recomenda que Rebecca coma mais devagar. Em seguida uma outra moça vem e limpa o vômito. Rebecca a agradece, e a enfermeira olha em pânico para ela.-Não dirija palavra alguma à prisioneira, senhorita.- Diz.
-Prisioneira? Aquela moça era uma prisioneira?- Pergunta Rebecca.
-Sim, e sem mais perguntas.-Diz a enfermeira e se retira.
Olho para Rebecca, ela dá de ombros e continua comendo.
Fico observando ela, pensando em seu sonho, quando ela pergunta:-Você quer?
-Hã? Não não, muito obrigada.
Olho para Gust, ele está lendo o livro que eu trouxe. Rebecca acaba de comer e põe a bandeja na mesinha ao lado.-Então...- Ela diz.- Nós vamos ficar aqui, não vamos?
-Claro, quero lutar junto contra aqueles que mataram meus pais.
Ela parece satisfeita.-Era isso que eu queria ouvir.
* * *
Demorou mais dois dias para que Bec pudesse sair da enfermaria. Quando saiu, levei ela para um passeio "romântico" no acampamento. Ela parou várias vezes a fim de comer os frutos que exibiam suas cores berrantes em meio às folhas verdes. Nós havíamos nos alistado para lutar ao lado do exército algumas horas antes, e amanhã começaríamos nosso treinamento. Eu não estava de acordo com Rebecca participar de uma guerra, mas ela insistira muito, e quando ela insistia, ela conseguia.
* * *
Nos encontramos no Grande Salão, às oito da manhã de sexta-feira para combinarmos nossa estratégia para o ataque que aconteceria dali a uma semana. Rebecca e eu havíamos recebido praticamente todo o treinamento necessário durante um mês. Estávamos prontos e com muita fúria. O sol entrava pelas janelas e se depositava sobre os cabelos de Rebecca, fazendo parecer que eram fios de ouro. Ela estava linda, determinada e sorrindo.
-Estamos aqui reunidos para combinar a estratégia de batalha que será usada sextas-feira da semana que vem, durante nossa invasão à nova aldeia que os Javalis Ceifeiros tomaram nesta terça-feira.- Camelia deu início a reunião.
-Estava discutindo com Caio e Lisa sobre três estratégias, e acabamos por escolher a seguinte.
Ela espalhou um mapa cujo título era "Aldeia Hewchibat" por cima da mesa. Todos se aproximaram.
-Dividiremos os soldados em dois grupos: os que irão distrair, e os que irão atacar. O grupo que irá distrair entrará pela frente, o que seria o mais óbvio para um exército amador. Irão começar a atirar flechas nas casas e nas pessoas, até que elas comecem a atirar também. No clímax da batalha, o grupo de ataque entrará pela floresta, atravessando o rio e atirando nos inimigos pelas costas. Cercaremos eles em todos os lados, pouparemos as crianças e adolescentes, levaremos os animais para nossa criação e os sobreviventes como prisioneiros. Não esqueçam de dizer quem somos e de sempre prestar atenção no inimigo. Dêem tudo de si e não hesitem em lutar.- Ela fez uma pausa.- Alguma pergunta?
Todos negaram com a cabeça.
-Ótimo, voltem aos seus serviços. Estejam aqui quinta-feira nesta mesma hora para repassarmos o plano. Sexta-feira iremos retomar a Aldeia Hewchibat dos Javalis Ceifeiros, e, se tivermos sorte, descobriremos quem é Calaghi.
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O Príncipe e a Serva
Romanceprólogo "Naquele dia pálido e triste, ela chegou como se fosse o sol, se destacando de todo o cinza e do marrom e do verde apagado. Era simplesmente o que faltava para tornar a paisagem perfeita, tão perfeita que nem parecia alguma coisa possível de...