Capítulo 8

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— Joga pra mim! — disse um dos garotos que brincavam na rua.

A bola de futebol se aproximou lentamente e parou diante dos pés de Izzat. Com o pé direito, corrigiu sua trajetória e a dominou. Olhou para o garoto que se aproximava e sorriu. Sem perceber, recordou sua infância e os jogos intermináveis com seu irmão Said. No verão, os dois brincavam com os meninos da vizinhança até anoitecer. Paravam apenas para a oração do crepúsculo, quando Raaji os chamava, já enfurecido.

— Vamos, jogue! — o menino gritou outra vez. Izzat balançou a cabeça, se afastou um pouco e chutou a bola. Logo viu vários garotos correndo atrás dela em busca do gol improvisado no meio de uma das estreitas ruas de Belleville, um bairro ao leste do centro da cidade, que um dia fora habitado por pessoas de diversas origens: chinesa, judaica, latina e, sobretudo, árabe. Por anos, todas essas etnias conviveram de forma pacífica e ordeira, tornando o lugar um exemplo bem-sucedido da coexistência multicultural, porém, depois dos atentados em série, muitos decidiram abandonar essa região, que era palco recorrente de confrontos entre a polícia e militantes árabes. As ruas comerciais estavam desoladas; poucos eram os comerciantes que mantinham seus negócios abertos; escassas eram as pessoas de outros lugares que se arriscavam a frequentar a região. Em vista disso, havia muito espaço para os jogos da garotada, cujas famílias ainda residiam por ali.

Depois de passar pelos meninos, Izzat caminhou alguns metros e entrou em uma antiga loja de tecidos. Viu uma senhora idosa e simpática se aproximando com os olhos brilhando. Ela vestia uma Djellaba preta e na cabeça um hijab da mesma cor. Seu andar era encurvado mas, apesar do esforço, parecia satisfeita em atendê-lo. Talvez tenha visto nele o cliente que salvaria o seu dia da miséria. Ele a cumprimentou com um sorriso modesto e falou:

— Deus vos inflija o Seu castigo, ou então o faça por nossas mãos.

O sorriso da senhora subitamente desapareceu. Ela o encarou por alguns instantes e com o dedo, pediu que a acompanhasse. Saíram do salão da loja por uma pequena porta. Ela apertou um botão atrás de um quadro, que fez abrir outra porta escondida em uma parede encoberta por rolos de tecidos pendurados. Izzat agradeceu com a cabeça e passou pela abertura. Viu à sua frente uma escada de madeira rústica que levava a uma espécie de sótão. A escada era estreita e mal iluminada. À medida que avançava cada degrau, as lembranças da primeira vez que estivera ali surgiam em sua mente de forma nítida.

***

Suas lágrimas já haviam secado e, com elas, sua esperança. A chuva que caía sobre a cidade fez com que todos os que estavam ali, no cemitério, prestando suas últimas homenagens a Said, ficassem completamente encharcados. Sombrinhas e capas de chuva pareciam ser usadas em vão. Porém, não era com a chuva que todos se indignavam, e sim, com a forma injusta e cruel que um rapaz bom e honesto perdera sua vida, cuja razão estúpida apontada pelas autoridades foi a tentativa de fuga de uma blitz de rotina. Afirmaram que Said havia morrido na perseguição e que, ao levar um tiro, batera o carro na vitrine da loja. Naturalmente, essa versão deixou o coração de Izzat cheio de cólera. Mas de nada valia o seu testemunho diante da narrativa feita pelos policiais que, para sustentar a versão, alteraram a cena do crime e utilizaram de meias verdades. Não obstante, no fundo, a ordem dos fatores não era o que mais importava. Said estava morto. Essa era a verdade que interessava e que ressoava insistente na mente do rapaz.

Para piorar, já se passara três dias desde o homicídio e o corpo de Said fora devolvido pela polícia, embalsamado. Prática inaceitável pelo Islã, assim como a cremação. Para os tais, todo muçulmano tem o direito de ser sepultado em 24 horas após a morte; de ser lavado, secado e purificado, bem como vestido em um pedaço grande de tecido de algodão chamado Kafan. Todo o ritual precisou ser improvisado em Said. Nada podia ser mais indigno e humilhante.

IZZATOnde histórias criam vida. Descubra agora