Era uma noite fria em São Paulo, as mãos de Marcos congelavam junto ao volante enquanto ele dirigia sem rumo, sua casa não era mais um lugar seguro, e ele não poderia comprometer nenhum conhecido na situação em que se encontrava, os semáforos e postes de luz brilhavam em meio a uma escuridão profunda que a cidade paulistana mergulhava durante a madrugada. Poucas almas vivas eram vistas a cada esquina, e na maioria das vezes eram pessoas perdidas nesse mundo imundo em que vivemos, seres humanos que abandonaram a tempos o ideal de vida e passaram a somente sobreviver, tornando-se só um número para o sistema. Esse mesmo sistema que rege a maior parte de nosso planeta, e faz as pessoas se distanciarem mais a cada dia, os sentimentos são abafados e omitidos como se fossem crimes, a hipocrisia chegou a um ponto tão extremo em nossa sociedade que se uma pessoa não quiser ficar a mercê do julgamento e da tirania dessa própria sociedade, é necessário que ela não fale, não ouça, não veja, não sinta, apenas finja que tudo está bem, finja que os problemas não existem, que suas inseguranças são besteiras banais. O advogado ligou a rádio e nela tocava "Não existe amor em SP" do rapper Criolo, e isso parecia até que fora proposital, já que descreve com exatidão o modo como ele enxerga sua cidade natal naquele momento, e em meio aquelas pessoas, um verso era repetido em sua mente: "Aqui ninguém vai pro céu". Ao mesmo tempo que tudo aquilo reverberava em seus pensamentos, ele tentava encontrar um sentido para as suas ações recentes, já que tudo o que ele fez foi seguindo o impulso e não a razão, era a hora de respirar e tentar descobrir o que fazer em seguida, considerando inclusive o conselho de André. Não que a vingança deixasse de ser o seu principal objetivo, mas ele precisava resolver alguns assuntos antes de continuar essa empreitada, para que se ele morresse antes de termina-la, nada ficasse sem ter sido resolvido. Havia duas coisas que ele precisava fazer antes de continuar tal vingança, as duas eram de suma importância para que ele tivesse forças para continuar, as duas trariam alento para seu machucado coração. Nenhum dos dois assuntos que precisavam ser resolvidos eram fáceis de lidar, ambos requeriam um grande nível de coragem de Marcos, mas ele precisava fazer, então partiu para tratar do primeiro, um que, tecnicamente, seria impossível, mas se ele não fizesse logo, a angústia o destruiria por dentro.
O advogado agora tinha um rumo para seguir, ele precisava ir até o cemitério onde sua família estava enterrada, ele não teve a chance de dizer o que precisava para seus pais, nem de pedir desculpas para seu irmão, isso era algo que aparecia em todos os seus sonhos, assombrando-o de uma forma insuportável, imagens do acidente se mesclavam com a cena de Márcio morto no chão do próprio apartamento, e o torturavam, tornando a ideia de dormir insuportável. Enquanto ele guiava ao carro em direção ao bairro de Santo Amaro, lugar onde nasceu, cresceu e onde seus pais foram sepultados, um aterrorizante pensamento lhe passava pela cabeça, ele tinha dúvidas se conseguiria dizer o que precisava, e se falhasse, isso poderia tirar a sua confiança e acabar com seu plano, mesmo que isso parecesse ridículo, já que ele conversaria com mortos, a insegurança estava sufocando-o. Marcos estacionou o carro em frente ao cemitério e entrou, eram por volta das 4 da manhã, tudo estava escuro, e o advogado foi caminhando por entre os túmulos até chegar ao de sua família, se ajoelhou e dirigiu a palavra ao seu pai:
- Pai, não sei por onde começar, sei que brigamos muito durante toda a minha vida, para mim, por muitas vezes parecia que nada que fizesse era bom o suficiente para o senhor, eu me esforçava o máximo possível para tudo, esperando que o senhor aprovasse, ou mostrasse o mínimo de orgulho, mas você sempre apontava os defeitos em vez de esboçar algum elogio, isso me doeu por muito tempo, mas hoje percebo que o senhor só fez o que era necessário para eu crescer, toda vez que criticava algo, eu corrigia os erros e melhorava meu desempenho. Lembro-me que quando terminei o Ensino Médio, eu queria cursar algo ligado a Artes, mas o senhor me tirou essa ideia da cabeça, e me fez cursar Direito, e hoje em dia eu vejo que não poderia ser diferente, eu adoro minha profissão e te agradecerei eternamente por isso - As lágrimas começavam a rolar pelo rosto de Marcos enquanto ele tentava prosseguir - Sei que se fosse possível o senhor me responder, estaria me xingando porque eu estou enrolando muito e porque estou chorando, mas é muito difícil estar aqui tentando me desculpar, eu sei que fui um filho muito mal agradecido, depois de que saí de casa eu raramente ia visitar o senhor e mamãe, eu me culpo todo dia por isso e por não ter insistido mais para busca-los naquele dia, eu não poderia ter deixado o Márcio ir. Espero de que onde o senhor esteja, me perdoe - Marcos olhou por mais uma vez onde estava escrito o nome Paulo Figueiredo Martins e se virou para onde estava escrito Maria Clara Girardi Martins e continuou:
- Mãe, você foi a pessoa que mais me incentivou em toda a minha vida, e eu nunca te agradeci por isso, eu fui totalmente ingrato com você, virei as costas para você depois que fui cursar a faculdade, tinha muitas mágoas relacionadas ao pai e acabei deixando isso afetar a nossa relação que era linda, você foi a melhor mãe que eu podia querer, mas eu só percebo isso agora, depois de ter perdido você - Começara a chover, parecia até um sinal, mas ele não acreditava em sinais do tipo, então continuou - Você me dizia quando eu era jovem para eu aproveitar tudo, porque uma hora todas as coisas desaparecem, e é nessa hora que eu perceberia o valor de tais coisas, e esse conselho sempre me ajudou a valorizar tudo que eu tinha, mas hoje percebo que ele não valia só para coisas, mas para pessoas também, mas eu não segui o conselho nesse quesito, não dei valor a minha família e agora estou sozinho nesse mundo, e por isso vim até aqui pedir desculpas, tenho tanta saudade Dona Maria, lembro que você odiava quando eu te chamava assim. Mãe, eu te amo, e sempre me lembrarei da senhora com aquele olhar doce e acolhedor, aquele jeito atencioso até com as pessoas que a senhora não gostava, enfim, você é e sempre será a melhor pessoa que eu já conheci, e espero que me perdoe por todos os meus erros - Depois de pedir o perdão dos pais, Marcos ficou em silêncio para tentar recuperar as forças, ele ainda precisava ter uma conversa com seu irmão, já que foi com ele que o advogado cometeu o maior erro de sua vida, nunca se abandona alguém em uma fase difícil da vida, mas essa é uma lição que ele não aprendeu a tempo.
- Marcinho, sei que nós nunca fomos próximos como outros irmãos que nós conhecíamos, mas eu sempre me senti responsável por você, era meu irmão mais novo, imitava tudo que eu fazia, mas eu não fui uma boa influência e consequentemente, você se tornou uma pessoa fria e sem qualquer responsabilidade, e por isso eu passei 10 anos te culpando pelo que aconteceu com os nossos pais, mas hoje sei que o certo era ter trazido você para perto, tentar ajuda-lo a encontrar um rumo para sua vida, eu fui omisso e me culparei para o resto da minha vida por isso, foi por minha culpa que você entrou nesse mundo horrível, que conheceu a pior faceta de um ser humano, eu só espero que um dia você me perdoe, assim como pedi para nossos pais, peço a você - Parecia que uma mochila pesado havia sido tirada das costas de Marcos, mas uma voz saída da escuridão acabou com essa sensação de alívio.
- Os mortos não perdoam, meu filho - um senhor saído de trás de um dos túmulos fitava o advogado ajoelhado - Eles podem ouvir e sentir tudo o que você faz, depende da sua crença, mas perdoar é algo que eles não podem mais fazer, eu tenho certeza que os acontecimentos que causavam preocupações aqui na Terra já não afligem mais as suas almas, sei que se você está aqui é porque você sentia que era necessário dizer tais coisas para seus familiares, mas eu lhe aconselho que tente consertar e criar laços com pessoas que ainda estejam vivas, para que não precise voltar a esse lugar parar pedir o perdão de outras pessoas. - O senhor deu a mão a Marcos, lhe deu um abraço e disse - Agora eu preciso ir, mas lembre-se, corra atrás de quem está vivo e é importante para você, para não se arrepender depois.
O homem saiu andando e deixou o advogado lá parado em meio a seu próprios pensamentos. Marcos chegou a perguntar quem era o conselheiro, mas ele já havia partido, mesmo assim, ele tinha entendido as sábias palavras daquele senhor, ele precisava ir atrás da pessoa que ele amava, uma certa delegada que mexia muito com ele.
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Implacável Vingança
AcciónNo meio de uma noite fria em São Paulo, um acontecimento muda a pacata vida do advogado Marcos Martins. A morte de seu irmão faz ele tomar uma difícil decisão, lutar contra tudo e contra todos para vinga-lo. Mas no meio desta Implacável Vinganç...