Eu aguardo tempo suficiente até que todos naquela casa acabem dormindo.
Após ter passado quase duas horas sem nenhuma movimentação, eu desço do telhado e subo no muro da casa vizinha, antes de descer para o quintal da casa onde está todo o grupo. Olho para o alto, acreditando já estar próximo das 2 ou 3 da madrugada. Era hora de tirar o meu lucro e sair dali.
Caminho descalça, com muito cuidado pela grama daquele quintal. Banguela e Fedido estão dormindo ao lado da fogueira apagada, e facilmente evito os dois, andando perto do muro, bem longe deles. Me aproximo das mochilas e esvazio uma e fico enchendo a outra com comida. Coloco a placa de madeira dentro daquela mesma mochila. Olho para as roupas e os pertences dos outros. Pego a arma velha do casal, as sandálias da mensageira e também as peças de roupa da gangue, mas estas coloco na outra mochila, vazia. Vou caminhando em direção do corredor que liga o quintal dos fundos com a frente do sobrado, evitando andar por dentro dela. Melhor evitar acordar a mensageira e seu novo chefe.
Caminho sem problemas até a garagem da casa, com o portão de madeira encostado, dando acesso fácil para a rua cheia de mato. Observo as duas motos, que eu mesma furei os pneus e deixei vazar todo o gás combustível. Olho para a moto do chefe, pronta para ser roubada... E depois olho de volta para a casa, ponderando o que fazer.
Se eu roubasse a moto, ia chamar a atenção de tudo e todos durante a noite, me expondo não apenas aos 3 bandidos, mas também a qualquer outro animal ou pessoa que ouvisse o meu motor a quilômetros. E me expor viajando por ai com uma moto roubada chamaria muito a atenção. Ainda mais sendo uma nômade.
E também ia chamar a atenção do rapaz que já libertei, fazendo ele voltar para onde estava ou tomar um rumo diferente do que já decidiu tomar. Se eu deixasse tudo do jeito que está, talvez só a mensageira irá ser castigada, se fosse acusada de ter feito aquilo como se fosse uma vingança encima dos dois capangas que abusaram dela. Mas também poderiam culpar o rapaz que eu libertei a algum tempo.
Decido ir pelo melhor caminho. O meu. Nos dias de hoje não dá para ser honrada e moralista com quem não é seu leal amigo ou merecedor por algum motivo. Não devia nada ao rapaz, que já o soltei e o mandei fugir, fazendo muito por ele sem pedir nada em troca... E ainda o fiz esquecer aquela garota. E falando dela, que já decidiu seu próprio destino, deixando o rapaz por sua própria sorte para se salvar, esquecido na casa enquanto tentava agradar o chefe do bando que mandou espancar seu amigo ou namorado. Ao roubar as placas de madeira, ela teria mais valor para o chefe e até puniria os dois incompetentes que perderam a mochila e a placa. Foda-se a todos, não sou o superman para salvar o mundo.
Furo os pneus da terceira moto e deixo o gás combustível sair, deixando a válvula aberta. E para garantir termino de arrancar os espelhos retrovisores das motos. Uma mulher sempre precisa de bons espelhos. E tenho seis deles agora!
Saio em direção da rua, decidindo o que fazer. A antiga Mariana é pequena, mas comarca ou feudo de São Paulo dava vários lugares para me esconder. Decido me arriscar, indo andando no meio da noite, até uma das comunidades de túneis para ganhar algum dinheiro. Decido seguir para longe da Praça da Árvore e evitar o idiota que libertei. E também tenho que evitar ir para o Paraiso e Ana Rosa. Perto demais dos bandidos, e caso peguem o idiota que libertei, ele pode me descrever para eles. Mas sem roupas, acho que vai demorar mais para isto acontecer.
Olho para a garagem, quase me arrependendo de ter danificado aquela moto. Mas é melhor não arriscar-se a mais do que o normal. Começo a seguir pelas ruas, morro a cima. Evito as vias principais, capazes de passar carros e motos por causa das gangues de bandidos e arruaceiros. Ando perto dos muros das casas, pois ao sinal de qualquer coisa anormal, é fácil subir em uma árvore ou pular um muro, para ter um momento ou dois de proteção e pensar em uma saída rápida.
Vejo a distância alguns pontos de luz, mantido por fogueiras em alguns lugares aqui e ali a distância, facilmente visível a noite. Provavelmente é a moradia de gangues de saqueadores ou viajantes de algum tipo, descansando. Para acender fogueiras ou usar tochas, devem estar em um certo número para se proteger de outros saqueadores. Tento evitar estes locais, passando a duas ou três ruas de distância, aumentando de forma considerável o meu tempo de viagem. Ser capturada por um grupo de arruaceiros me faria virar uma escrava ou um cadáver. Viajar só é mais rápido, mas muito arriscado.
Lembro que me contaram que antes do primeiro grande pulso, no tempo dos meus bisavós ou antes, falavam que São Paulo era tão poderosa que o nome da cidade acabou batizando a província, e que sustentava todo o país. Mas isto mudou radicalmente. O primeiro grande pulso explodiu em algum lugar entre o Sol e a Terra...
Transmissões de dados eletrônicos e voz, aparelhos sem fio, aparelhos digitais, equipamentos de alta tecnologia, veículos e até mesmo brinquedos de criança pararam de funcionar. Em um mundo energético-digital, onde se podia falar com pessoas ao vivo em partes diferentes do sistema solar em segundos, se retrocedeu a tecnologia do século XIX ou menos. Ao menos temporariamente, enquanto os industriais e cientistas repunham ou substituíam o que estava defeituoso.
Dai veio o segundo pulso, cinco anos depois. E desta vez não apenas desligava ou queimava os aparelhos. Eles explodiam. Televisores, carros, aparelhos celulares refeitos, todo tipo de equipamento com alguma eletricidade e mais complexo que uma lâmpada antiga estourava de forma pirotécnica, inexplicavelmente. Se isto tivesse ocorrido durante o primeiro grande pulso, a humanidade teria sido dizimada. Por sorte, em 5 anos, a mudança de hábitos tornou as baixas "aceitáveis". Só os mais ricos e influentes que podiam pagar pelas novidades se tornavam vítimas. Os mais pobres, que ainda viviam nas trevas da falta de aparelhos e brinquedos digitais, escaparam por pouco desta.
Durante o segundo grande pulso o efeito foi mais moral que material. As fábricas reviam sua forma de produzir, voltando a épocas "analógicas" e mecânicas. Os governos, com a perda da comunicação por meios elétricos, passou a ser moroso e fragmentado.
Entre o primeiro e o segundo houve um tempo de cinco anos, para a recuperação da indústria. Mas o terceiro grande pulso aconteceu apenas três anos depois. Plantas começaram a aparecer de forma anormal em todos os lugares. Onde tivesse lugar para o sol chegar durante o terceiro grande pulso, a mata cresceu descontroladamente.
Plantas viraram árvores adultas em questão de semanas. Plantas rasteiras dominavam paredes e pisos com velocidade incrível. Árvores frutíferas apareciam a todo lugar, bastasse o vento passar no lugar com alguma frequência. Mas da mesma proporção que o verde voltava revigorado, a vida humana corria mais riscos. Surgiram (ou seria retornaram?) novas espécies de plantas e animais. Algumas venenosas, outras alucinógenas. As variedades e quantidades eram tantas que catalogar todas era bem trabalhoso. Outro efeito colateral deste terceiro pulso foi a taxa de natalidade e mortalidade. Pessoas morriam mais facilmente. Crianças não nasciam tão facilmente. Em épocas antes do primeiro grande pulso, já existia uma queda na taxa de nascimentos, mas agora, a proporção é bem mais baixa.
Depois de um ano do terceiro grande pulso, começamos a ter um grande pulso a cada cinco anos. É uma explosão de luz cegante que todos sentem a energia correndo nos próprios ossos. Animais e pessoas nascidas durante este pulso já nascem cegas, ou tem algum tipo de alteração física ou mental única. Durante a semana do ano que corresponde a este pulso, as pessoas buscam abrigos e evitam viajar por sete dias, por puro medo e pavor.
A minha reflexão sobre os pulsos é interrompida, quando finalmente noto o sol começando a nascer. Sinto o cheiro de ferrugem e fuligem no ar, inexplicável a um lugar sem carros. Pelas curvas e desvios que fiz, acredito ter chegado próximo a região da comunidade da Liberdade. De longe e mesma noite, é possível ver os corpos dos criminosos enforcados nos arcos dos viadutos que levam a velha Liberdade. Por pura precaução, eu desvio o meu caminho, caminhando em direção a velha Sé, evitando chegar na Liberdade.
Andar diretamente entre os lugares é fácil e rápido. O perigoso é que se não tomar cuidado e pegar uma destas rotas, os bandidos ou predadores o escolhem como alvo.
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Nômade Adri
Ciencia FicciónHistórias da nômade Adriana, que sobrevive em uma São Paulo pós-apocalíptica depois de um desastre natural que afetou todo o mundo gerações atrás. Literatura adulta.