Antiga Sé - 03

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Observo a rua pela janela... Imagino que seja uma sete horas da noite. Olho em direção a torre do templo da sé, onde o relógio ainda marca as horas, que continua quebrado há séculos. Decido me vestir, usando uma muda de roupas limpas. Calça, sandálias novas, uma camiseta de manga comprida e uma jaqueta.

No bolso levo uma faca, bem escondida. A arma que roubei deixo no quarto, teria problemas se fosse pego com ela. Pego os meus cigarros artesanais e algumas moedas. Apesar da antiga Sé ter alguma segurança, não é bom abusar da sorte. Desço cinco lances e escada e aviso a dona da pensão que vou sair por algum tempo. Do lado de fora vejo o garoto dos baldes e outros dois trabalhadores da pousada. Cumprimento ele com um aceno em silêncio e sigo o meu caminho.

As barracas e tendas que vendiam bobagens de dia sumiram. Ao cair a noite no lugar se vende produtos e serviços para outro público. Vejo barracas vendendo armas antigas, laminas, remédios feitos de ervas e animais de todos os tipos, bebidas caseiras e outros itens variados. Paro em uma barraca que vende mapas pintados em tecidos. Examino alguns, notando o quanto estavam errados. Pergunto o preço de um deles, por mórbida curiosidade... Que pelo valor dito pelo comerciante, pagaria a minha hospedagem por algumas semanas na Sé.

Ronnie vai lucrar muito. Aquela placa de madeira tem um bom valor, por ser capaz de produzir bons mapas por algum tempo. Provavelmente ele irá pagar uma recompensa para encontrar o rapaz que entalhou aquilo por puro capricho. Ron realmente ama carpinteiros com dotes artísticos. Em todos os sentidos.

Sigo em direção a uma pequena plataforma de madeira. De dia é feito leilões de animais ali ou apresentações artísticas e enforcamentos, mas a noite é usada pela comunidade da Sé para expor seus escravos e prisioneiros. Me aproximo da plataforma, vendo nove pessoas em pé, amarradas. Sete rapazes, três mulheres. Alguns deles mal chegaram na adolescência, enquanto as mulheres e dois homens eram já de uma certa idade.

Pergunto ao vendedor o preço e o motivo de cada um estar ali. Os mais velhos estão ali por não serem capazes de pagar suas dívidas ao longo dos anos e não terem mais como pagar. Já os garotos são órfãos, sem pais por terem sidos abandonados ou mortos enquanto viajavam. Penso por alguns momentos se seria possível comprar ao menos um deles para se tornar um aprendiz de mensageiro, mas logo descarto a ideia.

Primeiro, não devo pagar pela liberdade dos outros. Eles podem trabalhar para comprar ela ou fugirem ao longo dos anos. Também não posso colocar a vida deles em risco. Quem compra um escravo estará sendo responsável por ele enquanto estiver na cidade... E se um deles fugir e cometer um crime, seria responsabilizada. E o pior, não consigo garantir o meu sustento a longo prazo, imagina manter um aprendiz sem experiência em viagens por meses ou anos a fio, até se tornar capaz de trabalhar comigo sem me atrasar ou causar problemas. Talvez quando eu tiver um lar para voltar, seria interessante ter alguém para voltar. Mas não agora, não nas condições que vivo atualmente.

Deixo a calçada do comércio, um pouco irritada e sigo em direção a frente do tempo da Sé. Sua imponência de séculos ainda fascina, apesar de ter sido maculada pelas barracas de jogos de azar, colocadas na praça a frente do templo. A jogatina mantém as reformas constantes do templo, portanto quando cai a noite o lugar vira um antro de jogo, venda de drogas e troca de favores e serviços.

Ando no meio da pequena multidão que se aglomera em frente a jogos de bingo, roleta e barracas de vinte-e-um, observando a distância os jogos e procurando alguns informantes confiáveis. Recebo uma ou outra cantada e algumas propostas indecentes. Evito e recuso todas elas, sem provocar ninguém. Não estou segura aqui, e todo cuidado é pouco.

Na frente da barraca do jogo do braço de força eu encontro uma pessoa capaz de trocar informações. É um velho conhecido da cidade, um ex mensageiro que perdeu a perna fugindo de uma matilha de cães selvagens. Certos animais domésticos enlouqueceram após o quarto ou quinto grande pulso. Me aproximo dele, acenando com a mão em silêncio. Ele aponta para me encontrar atrás das barracas. Sigo ele até uma mesa com duas cadeiras e uma lamparina de óleo acesa.

- Como está, Antônio? - Pergunto, já pegando um lugar.

- Com os cupins me incomodando, como sempre, Adriana. - Ele sorri, satisfeito em me ver após um bom tempo. Quando era mais nova, eu fiz algumas viagens com ele, aprendendo muita coisa. Antônio em quase cinquenta anos, mas está em ótima forma. - Eu tenho vendido alguns mapas em tecido para alguns idiotas do mercado. Eles vendem por preços absurdos, aqueles desenhos de criança...

- E mapas reais e sérios, tem vendido algum? - Não consigo deixar de achar divertida a ideia de ter gente comprando aquele lixo, sendo feito para ser ruim de propósito.

- O "clube" dos arquitetos sempre compra o que é novo, mas ainda tem dificuldades em copiar e atualizar mapas. Eles tentam em contratar de tempos em tempos, mas prefiro vender alguns mapas por encomenda, pelo preço certo.

- Tenho algumas noticias interessantes da Penha, Água Rasa, Liberdade, Mariana e Mooca. E talvez uma ou outra informação interessante a mais, dependendo do preço.

- Hmmm...Provavelmente você me contaria de graça em nome dos velhos tempos? - pergunta, sorrindo.

- Apenas um lugar. Os outros você terá que pagar para ter em primeira mão as informações. Ou esperar para ouvir da boca de outro.

- Me fala da Liberdade então. É perto, mas ninguém consegue entrar lá pelos túneis.

Respiro fundo. Ele pergunta justamente do lugar que passei recentemente.

- Eles estão enforcando seus prisioneiros e escravos, nos arcos que dão acesso aos viadutos. Notei alguns símbolos na região avisando que é para ficar afastado de lá.

- Eles detalharam o motivo?

- "Fé"

- Merda. Surgiu outro maluco religioso no lugar. Chegou a entrar?

- Durante o dia não vi nenhum vigia ou observador nas ruas, que estavam completamente vazias nas rotas de entrada. Mas notei que estava sendo observada, de certa forma. Tive que evitar passar pelos viadutos ou dentro do perímetro da comunidade da Liberdade e dar a volta por toda região. Eles reforçaram os muros em pelo menos dois metros.

- Aquela região tem prédios históricos, e muitas delas eram sedes de fundações comerciais ou de grupos influentes na Ásia...

- Isto antes do pulso. E agora?

- Ainda é muito complicado. Aqui recebemos povos de outras regiões antes do pulso, mas eles mesmos criam a sua própria sociedade... Mantinham tradições e costumes ancestrais entre eles. Ao menos é o que falavam. Após o pulso, eles devem ter tido uma boa vantagem em comparação aos outros povos. Até meses atrás, vendiam ferramentas e todo tipo de engenhoca mecânica feita de madeira e metal por um preço aceitável. Agora não sei como eles vão se manter, sem o comércio.

- Pode me levantar mais informações sobre a Liberdade?

- Posso. Uma mão lava a outra, não?

- Sempre. Volto aqui amanhã a noite para ouvir o que conseguiu. E também falo outra coisa de graça. Se falar agora, terei que cobrar.

Antônio ri alto, sabendo como as coisas funcionam. Mensageiros e nômades raramente trocam dinheiro entre eles. Mas o toma lá dá cá na troca de favores é bem comum. Me despeço dele, indo em seguida para um dos bares abertos a noite. Por mais que gostasse de comer frutas, sentia a falta de uma comida quente de vez em quando.

Nômade AdriOnde histórias criam vida. Descubra agora