Eu passo os próximos 3 ou 4 dias viajando com o Arthur em direção a Lapa, sempre usando uma boa parte do período da tarde para treina-lo para melhorar as habilidades de escalada e ser mais furtivo ao viajar comigo. Apesar da urgência em resolver outros assuntos, eu preciso ensinar ele a ter ao menos alguns conhecimentos essenciais para a sobrevivência. Sempre quando é por volta de umas três da tarde, nos recolhemos em um abrigo provisório e usando velas para ensina-lo a desenhar mapas durante parte da noite, usando pena, tinta e papel. Algumas vezes ele treina usando o mapa das minhas costas, se tornando mais acostumado com a minha presença. Em outras faz copias razoáveis em mapas copiados em papel. Ensino ele a ler e a escrever cada vez mais, apesar de em breve precisar comprar livros para ele.
Porém um dia antes de chegar na antiga Lapa eu tento preparar o Arthur para os problemas que poderiam acontecer em breve. Paramos de viajar por volta da uma da tarde e escolhemos uma casa em ruinas com os muros altos localizada em uma rua sem saída. Vamos ao quintal dos fundos da casa e eu escolho um lugar discreto, removendo uma boa parte do entulho dali... Para depois cavar com as mãos um bom buraco de profundidade razoável, usando pá quebrada e bem enferrujada como ferramenta.
Arthur observa tudo, sem falar nada, notando o meu rosto sério. Ele sabia que eu estava fazendo um "testamento" com ele, que é quando um nômade enterra alguma coisa de valor diante de outro, para que no futuro, um dos dois usem o que foi enterrado em caso de emergência. Ele observa com muita atenção eu tirar três lingotes de prata e deixar no chão, ao lado do buraco aberto... E depois enrolo os outros três lingotes de prata restantes em um pano grosso, colocando com cuidado no fundo do buraco e cobrindo de terra.
- Arthur, prefere laranjeira, jabuticabeira ou goiabeira?
- Laranjeira?
Por escolha dele, eu plano algumas sementes de laranja naquele solo e faço um circulo de pedras ao redor onde a muda irá nascer. Por causa dos pulsos solares, uma laranjeira atingirá a vida adulta em no máximo um ou dois anos, já bem vistosa e cheia de frutos. Os lingotes vão ficar protegidos embaixo das raízes, sendo necessário algum trabalho para escava-los. Em algumas semanas, já vai ter uma muda de tamanho razoável ali.
Eu guardo os 3 lingotes de prata que restaram, guardando na minha mochila. Em silêncio eu levo o Arthur para dentro da casa e armamos acampamento bem mais cedo que de costume.
- Arthur, se algo me acontecer e quando você já for adulto, poderá pegar os lingotes de prata para pagar o seu casamento ou para te ajudar em alguma emergência... Porém estes lingotes foram pagos a mim pelo Atlas, da Arena do Pacaembu, você sabe o que isto significa?
- Ele nos ajudou em troca da sua ajuda?
- Quase. Alguns nômades fazem trocas de favores dependendo da situação, mas no caso do Atlas, a situação é mais séria. Ele poderá morrer algum dia se acontecer alguma derrota trágica na arena nos próximos meses ou anos... E mesmo assim não terá como ajudar os outros nômades facilmente. Ele não pode gastar a fortuna que acumulou ou tem parentes ou filhos para deixar de herança.
- E como conseguiu estas barras com ele?
- Ele ficou sabendo da situação delicada que a minha amiga na Lapa está passando. Então ele me deu metade de seus ganhos para ajudar a ela e a você. A ajuda que ele está dando a vocês dois é muito grande, e eu de tempos em tempos vou ter que visita-lo para levar noticias dos nômades até ele e trocar informações e outros favores para o Atlas e alguns contatos dele.
Arthur era novo, não passando dos 10 anos, apesar de já ter sobrevivido sozinho na mata e já ter virado escravo. Ele não precisaria saber que eu prestaria certos "favores especiais" ao Atlas toda vez que passar na região da Arena. Pelo que ele me deu, seria muito fácil eu me estabelecer em algum lugar e abrir algum comércio. Estava deixando claro ao Arthur quem o ajudou para que um dia, ele pague o favor de volta, se puder. Aqueles lingotes enterrados poderiam libertar ele ou algum amigo da escravidão, ou então usar como moeda de troca ou suborno no futuro.
- Arthur, quando chegarmos na Lapa, vou colocar você em um quarto e não poderá sair de lá, até eu ter resolvido alguns problemas. Como já expliquei antes, um casal de nômades amigos meus estão com problemas. Eu vou tentar negociar uma saída para eles, mas para evitar que eu ou você sejamos prejudicados de alguma forma, teremos que tomar certos cuidados.
- E o que eu devo fazer?
- Vou te deixar no quarto de uma pousada, com comida e alguns livros. Vai estudar o melhor que puder, mas por causa da situação delicada da minha amiga Luana, você não poderá andar pela cidade junto comigo a toa. Você pode ser acusado de algum crime que não cometeu e nós dois podemos virar escravos de novo.
- Você já foi escrava?
- Sim, mas isto é história para outro dia. Amanhã vamos chegar cedo na Lapa, vamos direto para uma pousada e você vai ficar lá. Vou te deixar comida e água para quase uma semana. Vou tentar voltar para o quarto todas as noites ou ao menos tentar te ver ao menos uma ou duas vezes durante o dia. Mas aconteça o que acontecer, não saia do quarto. Entendido?
- Sim.
- Eu vou usar estes lingotes para pagar a libertação da minha amiga e de seu marido. Portanto nada de falar sobre o que enterramos ou o que eu estou levando.
Após ter conversado sobre aquilo e ter falado sobre outras coisas com ele, nós dois fazemos uma janta rápida e dormimos cedo, pois o dia seguinte teria que ser levado com cuidado. Enquanto Arthur dormia, eu sai escondida para enterrar outros dois lingotes de prata, sem que ele soubesse onde estavam. Com o mesmo cuidado eu escondi cada lingote em casas diferentes, em ruas e em distâncias diferentes. Aqueles dois lingotes poderiam ser um bom trunfo para o futuro.
Retorno até onde o Arthur estava dormindo, para esperar acordada por algumas horas, até acorda-lo para chegar até os portões da Lapa. Chegamos ali por volta das seis da manhã, com o sol começando a surgir. O vigia do portão logo me reconhece, permitindo a minha entrada e a do Arthur. Usando um pouco do dinheiro que ainda restava, eu aluguei um quarto para nós dois para as próximas duas semanas, além de fazer alguns arranjos junto com o dono do lugar para que o garoto fique em segurança. Assim que os comércios abrem, eu cuido de comprar comida e água para o Arthur para os próximos dias, deixando tudo no quarto e somente após isto eu fico livre para lidar com outros problemas.
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Nômade Adri
Ciencia FicciónHistórias da nômade Adriana, que sobrevive em uma São Paulo pós-apocalíptica depois de um desastre natural que afetou todo o mundo gerações atrás. Literatura adulta.