28 CULPA

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N I C O L A S

A minha consciência tem milhares de vozes e cada voz traz-me milhares de histórias, e de cada história sou o vilão condenado.

- William Shakespeare

Quando era criança, papai e eu tivemos uma conversa muito séria numa das noites em que ele me colocou para dormir, ou pelo menos se tornou algo sério o suficiente para mim naquela época para que a recordação nunca tenha me largado. Era um tipo de tradição ler um capítulo de algum livro antes de dormir. Não importava o dia ou o quão cansado ele estivesse, papai sempre estava lá, ao pé da minha cama, encarando com sua voz os personagens dos livros. Ele dizia que todos os pais deveriam ler para seus filhos e que isso estava escrito no manual de como ser um bom pai. Hoje sorrio com essa lembrança e digo para mim mesmo que se um dia chegar a ter um filho, farei o possível para ser alguém como Tomas Meireles.

Mas o fato, é que naquela noite, Tomas estava claramente agitado. Eu estava quase completando oito anos, mas era esperto o suficiente para perceber que tinha alguma coisa errada. Papai não estava encarnando os personagens como de costume, o que sempre fazia com que Bernardo e eu déssemos risadas em baixo do cobertor. Sua voz estava robótica e sem qualquer sinal de interesse. Sua mente parecia em outro mundo enquanto os olhos percorriam as linhas do livro. Àquela altura eu já tinha perdido o interesse na história e o fitava com os olhos curioso enquanto puxava o cobertor até o queixo para me proteger do frio, além disso, estava incomodado pelo fato do meu irmão não estar ali naquela noite.

- Papai? – finalmente tive coragem o suficiente para chamar sua atenção. Ele ergueu os olhos com uma expressão surpresa, como se não esperasse por minha interrupção.

- O que foi, filho? – ele perguntou, com a testa enrugada.

- Você está bravo? – perguntei, piscando algumas vezes. Não era algo comum encontrar Tomas Meireles de mau humor ou irritadiço, ao contrário, ele estava sempre alegre e disposto a fazer qualquer pessoa sorrir, mas não naquela noite.

- Claro que não! Porque está perguntando isso, Nick? – ele era a única pessoa a usar esse apelido e eu adorava.

- Você tá sério. – falei, ainda com os olhos muito atentos em sua direção. A luz do meu quarto estava apagada e o lugar era iluminado apenas pelo abajur entre as duas camas.

- Não é nada. O papai só está um pouco cansado porque trabalho muito hoje. – ele explicou e concordei com a cabeça, sem mais questionamentos. Tomas me estuda por um momento, como se estivesse se perdido em seus próprios pensamentos. Ele então ergue os olhos para a segunda cama do quarto, que está impecavelmente arrumava, e vazia. – Você vai conseguir dormir hoje? – sua pergunta me arrancou um sorriso e afirmei com a cabeça.

- Você promete que amanhã ele vai estar aqui? – perguntei, dessa vez num tom mais sério, de desconfiança. Os olhos de papai se repuxaram quando ele abriu um sorriso e levou uma de suas mãos até o meu cabelo, acariciando enquanto me olhava.

- Nós já conversamos sobre isso, não foi? Seu irmão teve que ir visitar o pai e os avós dele em outra cidade, mas amanhã ele e a Lívia vão estar chegando. – ele disse e afirmei cautelosamente com a cabeça. Em seguida, Tomas me observou mais um minuto antes de soltar um longo e pesado suspiro. – Você gosta muito do seu irmão, não é? – não precisei pensar para acenar rapidamente com a cabeça. Papai riu.

- Menos quando ele se esconde. – falei, ficando um pouco mais sério. Papai deu algumas risadas antes de dizer algo.

- Sim, você já nos disse isso. – ele falou, ainda acariciando minha cabeça. – Você não gosta de perder ele de vista, não é mesmo? – acenei com a cabeça em resposta.

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