Olhou para trás a tempo de enxergar a nave triangular gigantesca surgir em meio a uma tempestade de raios vermelhos. Denk não acreditava no tamanho daquela coisa. Cobria facilmente toda a área de Ohm, com folga. Era lisa, negra e não apresentava propulsores visíveis. A tecnologia necessária para colocar algo daquele tamanho no ar ainda não havia sido inventada em Sion. Não tenho muito tempo. Precisava colocar em prática o plano que elaborou silenciosamente em sua cabeça nas duas últimas décadas. Vingaria o seu filho morto de alguma forma, nem que custasse sua própria vida.
Uma extensa rede de cavernas subterrâneas percorria a cidade. Raízes, rochas, terra e fibra sintética compunham a complexa estrutura que se estendia como uma teia ao longo de toda Ohm. A construção inicial, bem menor e modesta que a atual, data da época do Império Braduzi, há milhares de anos. Ao que parece, eles também teriam percebido o potencial da imensa reserva de numerílio enterrada naquele local. A Usina de Raios, nome dado ao sistema de captação de eletricidade, ficava bem no centro desse impressionante conjunto, e era para lá que Denk caminhava.
Teve de driblar no escuro a multidão de habitantes que corria em todas as direções em busca da proteção que o subsolo oferecia. Todos foram exaustivamente treinados a procurar os abrigos em caso de apagões repentinos. Foram feitos, inclusive, alguns treinamentos na época da grande invasão, mas é claro que ninguém lembrava daquilo. O velho engenheiro era, certamente, o único cidadão que não pretendia abrigar-se aquela noite.
— Cidadãos de Sion, não resistam ou usaremos força letal — ecoou uma voz masculina do céu, mas era como se estivesse na cabeça de quem a ouvia. Aquela ordem se repetiu mais duas vezes.
Denk ficou imediatamente paralisado ao escutar aquela voz. Isso é impossível. Ele sabia a quem ela pertencia. Passou anos ao lado dessa pessoa. Mesmo numa situação de perigo daquelas, conseguiria reconhecê-la. Como era possível que ele estivesse falando aquelas coisas? Fechou os olhos, controlando a ansiedade no seu peito, relembrando os momentos que passou ao lado de seu amado filho. Por um instante, sentiu que estava sozinho naquele túnel sem iluminação. Esperou décadas pela oportunidade de dar o troco naqueles que lhe tiraram seu filho amado, mas não estava preparado para esse tipo de surpresa. Não pode ser ele.
Seguiu pelo canto da parede de fibra, usando-a tanto para se guiar quanto para evitar trombar com algumas pessoas que ainda corriam desesperadas por ali. Após alguns metros, o fluxo tornou-se bem menor e ele já conseguia caminhar sem esbarrar em ninguém. Estava quase chegando ao seu destino. Repassou o plano na cabeça mais uma vez para ter certeza de que não falharia. Era o resultado de anos de pensamentos amargurados, associados a certo grau de depressão.
Denk sonhou com aquele dia desde que começou a estudar o numerílio há cerca de vinte anos. Todos evitavam a região da Clareira devido à alta incidência de raios. A área foi descampada justamente para evitar incêndios. Não havia nada que justificasse um fenômeno natural acontecendo tantas vezes em um único lugar. A Câmara do Povo, então, decidiu nomeá-lo como chefe da engenharia de Ohm, a fim de que descobrisse a razão daquela estranha anomalia. Não demorou muito para que a sua equipe se deparasse com uma imensa quantidade do metal desconhecido abaixo daquele ponto. Após algumas análises físicas, encontraram evidências de que o metal não só era um excelente condutor, mas também funcionava como uma espécie de bateria gigante, retendo carga elétrica por longos espaços de tempo. A ideia da Usina de Energia foi vista como uma excentricidade no começo, mas os números de Denk impressionaram até mesmo os mais céticos. Em menos de um ano, a invenção já se tornara a principal forma de energia da cidade, superando até mesmo os painéis solares nas copas das árvores. Uma outra propriedade do numerílio era a de se descarregar rapidamente quando em ressonância. Bastava aplicar um determinado comprimento de onda sonora na amplitude certa para que o numerílio emitisse uma descarga única e poderosa.
Chegando à sala central da Usina, o engenheiro pôde observar, através de uma janela no teto, a extensão da nave, que agora cobria toda a visão do céu. Apenas as luzes dos estranhos raios vermelhos permitiam enxergar alguma coisa. Uma circunferência luminosa azul-clara começou a se expandir na parte inferior do monstro, até ficar da largura exata da Clareira, como se fosse um alçapão. Não estou gostando disso. Denk apressou-se em seus afazeres. Sabia que nenhum equipamento eletrônico funcionaria. O velho havia projetado um sistema de descarga totalmente mecânico à base de vapor d'água. Assim que as caldeiras esquentavam, emitiam o vapor pelas tubulações, espalhadas ao longo do minério de numerílio, dotadas de diapasões potentes, cuidadosamente calibrados para emitir a onda sonora perfeita que causaria a descarga final. Se os cálculos estivessem certos, um feixe de elétrons poderoso seria emitido para cima por meio do para-raios.
— Essa é por você, Adeel! — disse antes de acender o fogo.
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