À primeira vista

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A carruagem corria pela estrada dos Viajantes, seguia fixa em seu destino, já eu não conseguia me ater à paisagem, meu foco estava nos sombrios que corriam pela floresta. Essa estrada não oferecia mais perigos como antes, ou não devia oferecer já que a paz tinha sido instaurada, mas ali estava a escolta sombria cuidando, como sempre, dos limites dos reinos e de mim, uma moradora de suas vilas.

Soltei um suspiro cheio de receio tentando imaginar quanto ainda faltava para chegar. Eu estava receosa de levar em frente essa decisão, apesar de querer muito fazê-lo.

Desde que o reino humano se livrou das antigas leis e do código de conduta que reduzia as mulheres a estado de total servidão, cresceu em mim a vontade de participar ativamente dessas mudanças que tinham que ocorrer naturalmente. Era algo íntimo, uma ansiedade de que o reino humano finalmente encontrasse o caminho da tolerância e da paz.

Não podia negar que eu ainda sentia mágoa por causa de minha mãe que morreu sem saber como estava a situação de meu pai, e também por meu pai que virou escravo por ordem do falecido rei Júlio. Meu pobre pai aceitou essa decisão para manter o segredo de nosso resgate na estrada antes que chegássemos ao destino que o rei traçou para nós. Desde então ele nunca mais nos procurou, nunca mais deu noticias, tudo para nos manter em segurança, então sim, eu tinha ainda algum rancor, mas era do antigo rei. Porém depois que ele morreu e tudo aquilo aconteceu, eu participei na batalha sombria cuidando igualmente de sombrios, Licans e humanos e foi depois desse evento que uma vontade poderosa de conhecer melhor o reino que me baniu aos nove anos me fez refletir sobre partir.

Na verdade em meu íntimo eu admitia que só foi depois de conhecer o príncipe Tiago e cuidar dele, que curiosidade sobre o reino humano me tomou. Afinal um homem que arriscou sua vida para ajudar Diana, a protegida dos príncipes sombrios, e que lutou em uma guerra mesmo sabendo que entre os sobrenaturais as chances de sair ileso era quase nenhuma, me deixou esperançosa de que a crueldade no reino humano pudesse ser sanada de alguma forma. De que havia esperança para minha raça, a humana.

Lembro-me de cada detalhe dessa batalha...

Os preparativos começaram quando a terra tremeu com a sublevação de todos os sombrios que dormiam. A surpresa estampada no rosto de cada um dos moradores mostrava que nunca antes isso tinha acontecido. E do nada, os Arcontes começaram a pedir que arrumássemos nossos pertences íntimos e levássemos apenas uma troca de roupas porque precisaríamos nos preparar para migrar para as casas mais escondidas do reino, pois uma batalha entre homens, lobos, sombrios e Leviatãs logo teria inicio. Quando o desespero dos rostos inexperientes com esse tipo de situação, ele pediu calma e silêncio, pois nossa segurança dependia disso.

Senti medo pela primeira vez desde que cheguei ao reino sombrio. Na nossa vila, o senhor Odair fez questão de nos escoltar, de cuidar daqueles que cuidaram dele enquanto dormia. Em fila, seguimos silenciosos por quase um dia, fomos escoltados por outros sombrios até então estranhos a nós.

Na grande casa do senhor Alan foi para onde todos os humanos foram mandados. Lembro-me ainda da decisão dos homens de manter a família segura enquanto seguiam para a área de combate para alimentar os sombrios. Algumas mulheres solteiras e outras viúvas também seguiram, e nós, que conhecíamos um pouco sobre remédios ficamos para cuidar dos feridos que logo começariam a chegar.

Foi um dia estranho, cheio de terror quando ouvimos os sons distantes da batalha que tinha iniciado. Não demorou e começou a chegar os primeiros feridos. Em sua maioria eram humanos e alguns sombrios que precisavam de sangue.

Alimentamos nossos senhores ordenadamente. Há uma regra muda entre os sombrios com a maneira de se alimentar. Quando são mulheres eles bebem do pulso e quando são homens do pescoço. Pelos costumes sombrios, uma mulher que não seja companheira não pode ser mordida no pescoço, pois isso é falta de respeito e imoral. Mas eram tantos a precisar de sangue para ativar a cura que no fim da tarde naquele dia de batalha, trabalhamos com os pulsos enfaixados já que eles também não podiam nos curar com a saliva.

Tratado dos Párias- O rei rebelde. ( Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora