Lua Minguante

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Pressentimento

Rebeca desligou o telefone com o coração apertado. Thaís tentava se agarrar a qualquer tipo de esperança, mesmo que mínima. A cirurgia terminara, e sua mãe resistira.

− Isso já uma boa notícia, eu acho que a pior parte já passou. Ela vai para o CTI, amanhã voltamos para tentar vê-la.

Caio mandou uma mensagem pelo celular:

Ele chegou, se perguntar por mim, diz que eu estava com dor de estômago, tomei remédio e dormi mais cedo. Não quero encontrar com ele.

Rebeca também não tinha vontade de sair do quarto. Preferia se esconder no quarto até o dia amanhecer e o pai sair de novo. Tinha medo de ouvir o choro da mãe questionando suas ausências. Tinha medo de encará-lo e sentir o mesmo asco que o irmão sentia.

Marina observava a lua que ia escurecendo naquelas noites minguantes. Um de seus lados já completamente tomado pela escuridão. O outro ainda brilhante e resistente ao seu completo apagamento.

– Você já está aí há um tempão. O que está fazendo? – perguntou Priscila.

– A lua minguante significa morte para a bruxaria. Não a simples morte do corpo, mas que algo será criado ou transformado. Eu pressinto que, por trás dessas trevas, há uma revelação.

Priscila fechou a cara, aquelas palavras lhe soaram ameaçadoras. Não gostava quando Marina subia nesse lugar de grande conhecedora de artes das trevas.

– Não distorça o sentido da bruxaria. Não se trata de artes das trevas! Eu já te falei sobre isso.

– Você me assusta Marina! Deu para ler meus pensamentos agora?

– Talvez... Ou apenas já conheça muito bem sua expressão tão usual quando tocamos no assunto. Já está na hora de você começar a estudar sério sobre a magia. Já começou a ler o livro que te emprestei?

– É... Já.

– Tudo bem. Então, eu vou procurar outra discípula. Sua indecisão já se transformou em incapacidade.

Marina abriu os braços diante da lua. Um sopro gelado atravessou a janela. Ela se curvou, pronunciou algumas palavras e se deitou. Aquela cena imobilizou Priscila. Ao mesmo tempo, desejava ardentemente aquele poder e era afogada pelo temor. "Isso é ridículo! É uma oportunidade incrível."

– Eu quero – decidiu-se enfim. – Será que podemos começar com algo mais prático, como o tarô? Quero usar isso, vou deixar todo mundo de queixo caído.

Marina não disse nada. Apenas a fuzilou com o olhar, antes de cerrar as pálpebras para o sono.

Morte

Thaís estava imóvel olhando o corpo inerte de sua mãe sob a maca do necrotério. Sua respiração estava profunda e alta, parecia querer respirar por ela, dar-lhe ar para voltar a viver. Não foi capaz de tocá-la, parecia já sentir seu corpo gelado a distância, e ele nem havia esfriado completamente. Ela estava sozinha. O pai e a irmã não quiseram vê-la ali. O desespero mudo a paralisou, mesmo que já não houvesse outra saída, mesmo que tivesse certeza de que isso aconteceria a qualquer momento. Ela começou a sentir um frio forte subindo pela sua espinha, tremia. Então, um enfermeiro entrou no necrotério trazendo outro corpo. Coberto por um lençol, abandonado pela vida. Aquilo tornou-se insuportável, Thaís correu sem conseguir cobrir o rosto da mãe.

Lá fora, as gotas da chuva brilhavam ao se encontrar com os raios de sol. Em algum lugar havia um arco-íris. Mas os olhos de Thaís estavam vidrados no chão, o soluço impertinente, as lágrimas salgadas melando o rosto e só. Não havia palavra que quisesse dizer ou ouvir. Por vezes, a respiração saía mais ofegante anunciando mais um rompante de lágrimas, até que houvesse mais alguns segundos de falsa pausa. Enquanto isso, o pai preenchia qualquer dor telefonando para os familiares e agilizando os preparativos para o funeral.

Enterro

Parece que, no velório, as pessoas buscavam inventar palavras para o indizível. Alguns falavam que aquela doença era cruel demais e que era preferível morrer a sofrer tanto; outros que pelo menos a família pôde fazer algum luto enquanto ela esteve doente... Eram tantas teorias vazias.

Thaís não podia ouvir nem falar palavra nenhuma. Estava muda e surda. Seus amigos chegaram e a abraçaram também mudos. Nem mesmo Miguel, que também já perdera o pai, sabia o que dizer. Eram experiências tão diferentes. Ele, que perdera o pai tão pequeno, que mal se lembrava dele. Será que é possível perder o que nunca teve? Será que perder a mãe tão poderosamente presente era mais doloroso que ser órfão desde sempre? O que lhe doía era não saber o que poderia ter tido do pai, mesmo que fosse um pouco mais, só para ter alguma lembrança. Já Thaís ainda não era capaz de dizer o que mais lhe doía agora.

Talvez a dor de Thaís estivesse nos músculos cansados, nos olhos ardidos... Talvez estivesse na solidão, na ausência do prumo que a mãe lhe oferecia... E, naquele momento, ela só procurava o abraço da mãe nos abraços que recebia. E, então, ela encontrou o abraço de Miguel. E não foi como os outros abraços, porque foi mútuo. Rebeca, Igor e os outros a abraçavam, enquanto Miguel também queria ser abraçado. Também queria ser consolado na dor da ausência que nunca cessa.

Quando o cortejo caminhava até a lápide, os amigos resolveram ir embora. Thaís também preferia voltar para casa com uma tia a ver o caixão com a mãe descer na cova. Estar ali, até aquele momento, já era mais do que poderia suportar.

Igor e Miguel observaram os olhos verdes avermelhados de Thaís enquanto ela entrava no carro. Rebeca sentia-se a mais impotente das amigas ao perceber que nada poderia fazer ou dizer. Gustavo, que, até então, manteve-se distante, consolou sua impotência com o olhar.

Enquanto caminhavam para casa, os rapazes marcavam um encontro para começarem os ensaios da banda. Antes que o ano letivo começasse e, com ele, outros acontecimentos.

Diário de Rebeca

A morte pode ser em vida. A minha mãe, que morre um pouco mais a cada dia que sofre pelo meu pai. E o meu pai, que morre a cada dia no coração do meu irmão. A morte pode ser uma travessia ou pode ser uma queda. Espero que Thaís seja capaz de ver essa escolha.

Os Olhos da Deusa (completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora