Num calor terrível que fazia em Salvador, era um alívio saber que as salas eram refrigeradas. Da porta da sala do 3º ano, através de uma fresta de vidro, consegui ver uma janela enorme do outro lado da sala, com uma bela visão das árvores. Meu desejo era correr para dentro da sala, sentar ao lado da janela, e me refrescar com o ar gelado. Diferente de mim, os outros alunos, inclusive a Malu, começaram a vestir seus casacos e se encolhiam como se uma tempestade estivesse por vir. Era muito engraçado!
Mas a graça acabou no exato momento em que entrei na sala. No mundo todo, não podia existir uma pessoa mais azarada do que eu. Jasper, Alexandre, Mateus e Gabriela, todos na mesma sala, um ano inteirinho. Visualizei imediatamente um lugar para me sentar, bem lá no fundo, mas algo me paralisou. Um clima esquisito, como se eu estivesse prestes a pisar em minas terrestres, com uma guerra declarada, porém, silenciosa. Alexandre e Mateus do lado esquerdo, Jasper na direção oposta, ao lado da janela. Nossa! Como eu queria voltar atrás e fazer diferente: eu teria prestado mais atenção antes de tombar na mala de Jasper, eu teria fugido de Mateus, ou poderia, quem sabe, nem ter nascido... Eu não sabia se ficava com raiva de Jasper ou se tinha pena por ele estar tão afastado das pessoas.
Uma coisa era escolher estar afastado das pessoas, como eu queria estar, outra coisa era ser isolado por elas. Antes que eu pudesse pensar em adiantar meus passos e passar rapidamente para o fundo da sala, fui interceptada pela professora de história, Simone.
- Você é desta turma? - Eu acenei que sim. - Como se chama?
- Marina... - falei tão baixo que quase nem eu mesma podia ouvir.
- Como? Shhh! Silêncio, pessoal! - Todos fizeram silêncio e olharam para mim. - Pode repetir seu nome? Aproveite e se apresente à turma!
Aquilo poderia ser um grande pesadelo, eu me beliscaria, cairia da cama, teria um enorme galo na cabeça e iria rir da minha cara. Mas não era um pesadelo e não tinha a menor graça.
- Meu nome é Marina... - eu disse, dando de ombros.
- Seu sotaque é meio diferente... Você é do Rio ou de São Paulo? - disse a professora, quando percebeu minha súbita timidez.
- Nenhum dos dois. Já morei em ambos os lugares... E em muitos outros - eu expliquei - Eu sou americana, na verdade. Meu pai era americano e eu nasci lá. E agora estou aqui.
Parei aquele discurso confuso quando comecei a gaguejar. Fiquei nervosa quando notei que Alexandre e Jasper fixaram a atenção no que eu falava. Alexandre, sentado totalmente despojado em cima da cadeira, sorria e fazia algum comentário com Mateus. Jasper, por outro lado, sentado com a coluna ereta, olhava para mim e para seu caderno, tentando demonstrar desinteresse, mas não conseguia disfarçar. Alguma coisa na minha história parecia ter chamado sua atenção.
- A gringa já "chegou, chegando", professora. Soube que andou derrubando os instrumentos de alguém - Mateus gritou
- Foi um infeliz acidente - eu consegui responder. - Você estava lá, Mateus, e viu tudo.
Caraca! Mateus era insuportável!
- Cuidado, lourinha, tem gente que se finge de músico, mas você nem imagina o que guarda na caixa - Alexandre continuou, olhando fixamente para Jasper.
Jasper devolveu o olhar, como se fosse responder. Os dois ficaram se encarando por alguns segundos, e na sala, todo mundo parecia ter parado de respirar. Depois disso, Jasper olhou para mim e balançou a cabeça sem responder a provocação. Será que ele achou que fiz de propósito?
- Dá um tempo, Xande! - Malu interrompeu.
Alexandre sorriu satisfeito e todos voltaram a falar baixinho. A professora rapidamente retomou a conversa.
- Então, Marina, que massa! Tenho certeza que você tem muita história para contar. Vamos começar a aula, pessoal. - Ela por fim acenou para que eu me sentasse.
Eu flutuava por entre as cadeiras, sentindo uma gota de suor descer pelas minhas costas. O calor era um misto de vergonha e raiva por ter sido usada por aqueles dois idiotas. Só queria me sentar. Desisti de sentar no fundo e fiz questão de sentar atrás de Jasper, próximo à janela. Não faço ideia do por quê. Talvez por estar tão próximo às árvores, podia sentir um pouquinho daquela paz lá de fora e diminuir a minha vontade de fugir dali. Apenas sentei, peguei meu caderno e tentei fazer anotações. Juro que tentei me concentrar no que Simone falava, mas só pensava em Jasper, no cheiro dele ali bem próximo a mim, dos seus olhos verdes, em como me olhava confuso quando discutimos, em como ele me segurou. Fiquei ainda tentando lembrar-me de onde eu o conhecia, eu sabia que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Por que ele não falava com ninguém e por que ele e Alexandre se odiavam?
Alexandre... Por que agia assim feito um idiota? Virei meu rosto na direção dele, com muita raiva. Ele conseguia despertar o que tinha de ruim em mim. A tal Gabriela estava com a cadeira dela colada na dele, totalmente ignorada, como um chiclete grudado na sola do sapato. Virei de volta, ainda me esforçando para acompanhar a aula, mas em vão. No final dela, no meu caderno só tinham três linhas: "1° bimestre"/ "Brasil "/ "Colonização do Brasil". Tudo bem, era apenas o primeiro dia de aula e eu poderia, em casa mesmo, estudar aquele assunto pelo livro. Já fiz isso tantas vezes! Cocei a cabeça com a ponta da caneta e enrolei meu indicador num cacho do meu cabelo. Eu precisava pensar no que eu ia fazer para não surtar. Escrevi "metas", risquei, "planos", risquei novamente, "Jasper" e senti alguém se agachar ao meu lado. Fechei rapidamente o caderno. Era Alexandre. Ele pôs os braços cruzados em cima da minha mesa e encostou seu queixo neles.
- Oi - ele disse.
- Sim - respondi seca.
- Então, lourinha... Você já conhece Salvador? - perguntou.
- Ainda não.
- Eu conheço um lugar massa pra gente almoçar. Topa?
Dava para acreditar naquele garoto sem noção? Ele achava mesmo que eu estava dando confiança? Jasper, com certeza, escutou, pela proximidade que estávamos dele, mas fiz questão de responder num tom mais alto para que mais pessoas pudessem ouvir.
- Sinto muito... - eu disse, cruzando meus braços. - Você chegou tarde. Já tenho companhia para o almoço - fiz sinal em direção a Gabriela -, e pelo visto você também. Não deixe a garota desapontada.
Ele era tão cínico que não mostrou qualquer descontentamento. Sorriu, fez uma reverência debochada e voltou para seu lugar. Gabriela me fuzilava com os olhos, a Malu arregalou os seus e o restante ria. O único que se mostrou impassível foi Jasper. Como ele conseguia? Ele parecia estar numa bolha. Não queria que ele achasse que eu estava do lado de Alexandre, ele parecia ser o motivo de Jasper agir assim. Abri novamente o caderno e li o nome que escrevi: "Jasper".
Eu não queria me meter em problemas, mas a curiosidade me consumia, queria desvendar aquele mistério. E, então, defini. Agora, eu tinha um novo plano.
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Onde eu quero ficar (Degustação)
Genç KurguMarina é uma garota americana que vem para o Brasil após uma tragédia familiar. Porém, nunca fica em um só lugar. Cansada de tanto mudar de endereço, Marina decide que não criará raízes em lugar algum. Afinal, sem amigos seria mais fácil partir par...