Para as sextas, Reginaldo

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Ele tinha as pernas cruzadas numa gaveta aberta e refletia. Ouviu naquele dia que, antes de virem manhãs ensolaradas, em janeiro, vêm as tempestuosas de julho. Não só nos determinados meses. Não apenas de um ano a outro. Mas não dessa vez, sem mais esperanças falsas. Não crie esperanças falsas. 

E não aquiesceria.

Como numa breve revolta, o propósito não era insinuar que transformações de tempos difíceis são improváveis dentro ou fora de parágrafos.

É muito pelo contrário... olha o fato de os clichês compararem tempestades, gotas e mais gotas d'água tão cheias de histórias a narrar... com tristeza. Mágoa. Solidão. Ausência. Confronto. Desistência. Saudade. Fim. Morte. Perda. Guarda-chuva. Tudo que você quiser. Se não quiser, a pergunta seguinte é inevitável: então você usa como justificativa as noites que saem afora formando ao redor do céu as tenebrosas e cheias e acinzentadas e espessas nuvens, as quais não teriam nem um pingo do contrário de seja lá o que você considera um efeito negativo? Se a resposta é sim, a resposta da resposta é que não. Elas têm infinitos pingos. Muitos. Todos eles prontos para argumentar contra você. Todos eles bem preparados até que um dia ensolarado rasgue a imensidão e muita coisa ruim aconteça, detonando um por um os clichês envolvendo criticá-los. O céu chora? Se o céu realmente chorasse, eu não estaria escrevendo sobre ele agora. Ele que estaria escrevendo sobre mim. Na verdade, eu estou escrevendo sobre ele, mas ainda sob ele. Fisicamente, claro. Fora do meu corpo, já sobrevoei dezenas de céus diferentes. Chovia de todos eles. Vou mostrá-los e especificá-los, não como se fosse necessário prová-los. Vou detê-los na minha consciência, até aquiescer.

Era o que Peter escrevia para si mesmo.

SAI DAQUI, TÁ CHOVENDO.

Era o que ele digitava no espaço dos parágrafos apagados, quando percebia ser monitorado por algum enxerido que entrava no seu quarto de súbito. Do texto original, na memória de quem tentava enxergar por trás de seus ombros, sobravam apenas letras emboladas muito graciosamente.

***

"Ah, então você escreve?"

"É."

"Sobre o quê? Corrupção? No Brasil tem muita! Eleições fraudulentas? Segurança? Porte de armas? Direitos humanos? Origem da vida? Religião? Extraterrestres? Figuras míticas? Lendas urbanas? Super-heróis? Tragédias naturais?"

Ficção não tinha nada a ver com aquilo: um monte de temas abordados por vez, previsíveis o bastante. Peter descrevia a ficção seriamente; raramente alguém experimentava da sua mais fantasiosa seriedade. (Não que alguém pudesse colecionar seriedades. Não que todas as suas ironias fossem hilariantes.) Mas o homem à sua frente, já envelhecido, não tinha nem por que compreendê-la. Preferia tentar ensinar a escrita dos algarismos romanos a um pato.

Com os pés cruzados no silêncio, o enxerido admirava o vidro e o barulho da chuva caindo; lembrava que era uma sexta à tarde. Estar num quarto com a vaga missão de tranquilizar um adolescente temperamental, e embaixo de chuva, nem chegava perto dos seus desejos na juventude. Nem era o seu filho, nem era a sua casa, nem era a sua família... era seu vizinho.

Um simples garoto fechado que, não muito recentemente, tinha engolido a única chave capaz de abri-lo. A cada nova sensação de progresso, suas mais longas e pensadas palavras (as melhores que podia oferecê-lo) acabavam numa única vogal acentuada:

— É.

Não ser simples... padrão juvenil. Não ter padrões? Que absurdo! O esforço para tentar descomplicar aquele ideal de simplicidade às avessas era inútil quando se tratava de um prisioneiro da adolescência que acabava tão mais preso em si mesmo.

Todas as Nuvens e o Legista (e todos os Legistas nas Nuvens)Onde histórias criam vida. Descubra agora