Antes da decisão - Cap:2

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Os cortes não são apenas cortes, são sentimentos. O ante-braço é o diário e a lâmina é a caneta que escreve com a tinta vermelha, meu sangue. Não são para chamar atenção, pois se fosse eu não os esconderia. Se fosse coisa de adolescente, não ficaria calada, escondendo tudo e de todos... Com medo de seus julgamentos e de suas palavras horríveis que acabam não só com o sentimento da pessoa, mas com a alma.

—Kartnay, vem comer. — Diz meu pai gritando no final da escada.

Desço as escadas rapidamente chegando a sala de jantar, me sentando na mesa onde se encontrava Wagner e Márcia já comendo seu arroz com strogonoff.

—Estou vendo de você ir morar com sua Tia Mara, Kartnay. —Diz Wagner sem direcionar seus olhos a mim

—Por que? Eu não quero ir, ela não gosta de mim. — Digo.

—Porque eu quero e não é certeza ainda, não discute comigo Kartnay.

—Por que não me matam logo? Pelo menos estarei feliz! —Ergo minha voz.

Apenas vejo sua mão colidir com meu rosto, me fazendo desequilibrar da cadeira e cair no chão afofado de carpete cinza.

—Você não é ninguém kartnay! Você é uma criança que não tem independência alguma! você não tem decisão nenhuma! estamos entendidos ou não?! — Wagner grita se levantando da cadeira.

Wagner me pega pelo pulso machucado e eu dou um grito baixo de dor, mas logo tampo minha boca com a outra mão.

Percebendo o que eu fiz, Wagner levanta minha manga e eu a puxo para perto de mim rapidamente.

Não sabia qual era sua expressão, só que me fuzilava com aqueles olhos esverdeados que ferviam em meio a luz da sala de jantar.

—Se cortando de novo!? Não esta bom essa vida? Você tem uma casa, um quarto, comida que muitos não tem sua idiota! Para de querer chamar atenção e vê se vira mulher! — Wagner bate a mão na mesa fazendo chacoalhar os objetos em cima.

—Wagner, se acalma —Diz Márcia se levantando.

—Isso é o de menos... — Respondo chorando.

—Se isso é o de menos, o que você quer então!? Me responde!

Amor! — Digo.

Subindo correndo para o meu quarto, deito na minha cama chorando. Estou cansada disso, não aguento mais, todo dia algo me acontece, o que eu tenho que fazer para ser feliz pelo menos por um dia? Estou chegando no meu limite.

Para distrair a cabeça, pego meus materiais de desenho e vou até a ponte — no meio da cidade de São Paulo —, onde sento na beirada, e assim começo a desenhar qualquer coisa, pensando sobre minha vida e qual decisão devo toma-la daqui para frente. Olho para o horizonte, onde se encontrava as estrelas e o céu que parecia estar junto ao mar. Na esperança de que minha vida fosse bela como essa paisagem, mas é impossível.

Nada é perfeito e nunca será, estou gritando em silencio pedindo ajuda, na esperança de alguém vir me salvar, mas ninguém vem, ninguém se importa comigo, o que irei fazer quando os cortes não forem mais o suficiente para me aliviar? Eu quero gritar para o mundo, mas será que alguém ouvirá minha voz? É como se tudo estivesse desmoronando e quando não sobrar mais nada, chegaria o fim da minha vida.

"Sua vida vai melhorar", será mesmo? Acabei desistindo de tudo, sei que nunca irá melhorar, minha única escapatória agora seria minha morte. Eu não tenho ninguém, porque eu faço todos irem embora, eu sou melhor sozinha, mas eu não quero ficar sozinha. Sou frágil, e como sou frágil... Já não sinto mais nada além de tristeza e a vontade de me matar fica cada vez mais forte, mas e quando ela me consumir por completo, o que vai acontecer?

Volto para casa de madrugada, subo para o meu quarto e encontro quem eu menos queria ver... Wagner, que se encontra de braços cruzados, com um olhar fixo e sério.

—Onde você estava? — Pergunta Wagner.

—Por que esta no meu quarto? Você não pode fazer isso... —Digo abaixando minha cabeça e olhando para o chão de carpete cinza.

—Posso, como eu já fiz. —Diz meu pai se levantando.

—Tenho escola daqui algumas horas... —Digo apontando para a porta.

—Amanhã iremos conversar. — Diz Wagner, antes de se retirar batendo a porta atrás de mim.

Como é difícil conviver com alguém que não sabe o significado da palavra amor e carinho. Ainda mais depois que minha mãe morreu. Como um alguém, que fora alegre e carinhoso, pode se transformar em um carrasco, frio, grosso e sem nenhum amor pela filha? Como pode uma pessoa mudar completamente seu eu?

Todos nós nos arrependemos de não ter feito algo no passado. Talvez antes da minha mãe morrer, ele poderia ter feito algo — Falado algo —, mas fora tarde demais para se dirigir tal palavra a sua amada Elena, sua esposa e minha amada mãe. Sempre com um sorriso grande em seu rosto, olhos esverdeados, cabelos ruivos naturais, uma pele branca e lisa como a neve, estatura média, e com um talento inimaginável em seus dedos, que tocavam piano gentilmente, com uma canção tão profunda, que chegava a tocar a alma — que melodia. —. Mas tudo mudou, após seu acidente de avião que estava voltando de Boston — Onde se apresentou pela primeira e última vez —. Caiu no meio do Oceano Atlântico sem deixar sobreviventes.

Os risos, a alegria da casa se foi para sempre. Até mesmo a melodia do grande e maravilhoso piano...

O Grito Silencioso (Livro I)Onde histórias criam vida. Descubra agora