MINHA TRAJETÓRIA

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Não é incomum ser um conservador. É invulgar, no entanto, ser um intelectual conservador. Tanto na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos cerca de 70% dos acadêmicos se identificam "à esquerda", ao passo que o ambiente cultural é cada vez mais hostil aos valores tradicionais ou a qualquer referência que possa ser feita às elevadas conquistas da civilização ocidental. Conservadores comuns — e muitas pessoas, possivelmente a maioria, se enquadram nessa categoria — são constantemente informados de que suas ideias e sentimentos são reacionários, preconceituosos, sexistas ou racistas. Apenas por serem o que são, atentam contra as novas normas de inclusão e de não discriminação. As tentativas honestas de viver de acordo com as próprias ideias, cuidando de suas famílias, apreciando as comunidades, cultuando os seus deuses e adotando uma cultura determinada e confirmada — essas tentativas são desprezadas e ridicularizadas pela casta dos Guardian. Por isso, nos círculos intelectuais, os conservadores se movem calma e silenciosamente, cruzando olhares pelo cômodo, assim como os homossexuais na obra de Proust, comparados por esse grande escritor aos deuses de Homero, conhecidos apenas pelos pares ao se movimentarem, disfarçados, no mundo dos mortais. Portanto, nós, os que supostamente excluem, vivemos sob pressão para esconder o que somos, por medo de sermos excluídos. Resisti à intimidação e, como consequência, a minha vida tem sido muito mais interessante do que pretendia que fosse. Nasci perto do fim da Segunda Guerra Mundial e cresci no lar de uma família de classe média. Meu pai era membro de um sindicato e do Partido Trabalhista, e sempre se questionou se havia traído as suas origens operárias ao tornar-se professor em uma escola primária. Pois a política, na visão de Jack Scruton, era a busca da luta de classes por outros meios. Ele acreditava que graças aos sindicatos e ao Partido Trabalhista a luta de classes começou a colocar contra a parede as classes mais altas, que seriam forçadas a entregar as propriedades roubadas. O maior obstáculo para esse acalentado desenlace era o Partido Conservador, uma instituição de grandes empresários, de incorporadores imobiliários, de aristocratas fundiários que esperavam vender a herança do povo britânico pelo maior lance para depois se mudarem para as Bahamas. Jack via-se atado a uma luta perpétua contra essa instituição em nome do campesinato anglo-saxão cujo direito nato fora roubado milhares de anos antes pelos cavaleiros normandos.

Tratava-se de uma narrativa que ele vira ser confirmada nas histórias ensinadas nas nossas escolas, nos escritos socialistas de William Morris e de H. J. Massingham, e em sua própria experiência de infância nos bairros miseráveis de Manchester, de onde escapou para um dos poucos lugares remanescentes da antiga Inglaterra, no entorno do rio Tâmisa. Lá, graças ao curso intensivo de treinamento para professor, conseguiu estabelecer-se com minha mãe, a quem conheceu quando ambos serviram no Comando de Bombardeio da Força Aérea Real (RAF) durante a guerra. E o amor pela antiga Inglaterra cresceu dentro dele, lado a lado com o ressentimento em relação aos aristocratas que a roubaram. Ele acreditava no socialismo, não como uma doutrina econômica, mas como uma restituição ao povo das terras que lhe pertenciam. Era difícil conviver com esse homem, principalmente depois que entrei na grammar schoolb e construí o meu caminho para Cambridge para lá ser recrutado pela classe inimiga. Contudo, entendi, a partir do meu pai, como o sentimento de classe foi profundamente insculpido na experiência de sua geração e na das comunidades industriais do Norte, de onde ele veio. Também aprendi em uma idade muito precoce que essa profunda experiência foi embelezada com uma galeria de livros de ficção estimulantes. A luta de classes para o meu pai era o verdadeiro épico nacional soando como música de fundo de sua vida assim como os sons da Guerra de Troia o são na literatura grega. Não compreendi as teorias econômicas do socialismo que estudei no livro Guia da mulher inteligente para o socialismo e o capitalismo, de George Bernard Shaw.

Já sabia, no entanto, que as teorias tinham pouca importância concreta. Os livros de ficção eram muito mais persuasivos do que os fatos, e mais convincente do que ambos era o desejo de ser arrastado em um movimento de massa dedicado à solidariedade com a promessa final de emancipação. As queixas de meu pai eram reais e bem fundamentadas, mas as suas soluções eram fantasiosas. Havia outro lado da personalidade do meu pai, entretanto, que muito me influenciou. Robert Conquest certa vez proclamou as três leis da política. A primeira delas dizia que todo mundo é de direita nos assuntos que conhece. Meu pai ilustra perfeitamente esta lei. Conhecia a zona rural, a história local, os antigos modos de vida, de trabalho e de edificação. Estudou as vilas nas cercanias de High Wy combe, onde vivíamos, e a história e a arquitetura da cidade. E, ao conhecer esses assuntos, tornou-se, em relação a eles, um ardoroso conservador. Aqui estavam as coisas admiráveis que ele desejava conservar. Persuadiu outras pessoas a juntar-se à sua campanha para proteger High Wy combe e suas vilas da destruição, ameaçadas por táticas inescrupulosas conduzidas por incorporadores imobiliários e pelos fanáticos por autoestradas. Fundou a Society High Wy combe, coletou assinaturas para petições e, pouco a pouco, aumentou a consciência de nossa cidade sobre a situação para a qual havia se esforçado de maneira séria e persistente.

Eu compartilhava o seu amor pelo campo e pelos antigos modos de construção; acreditava, como ele, que os estilos modernistas de arquitetura que profanavam a nossa cidade também estavam destruindo o seu tecido social; vi, pela primeira vez em minha vida, que é sempre correto conservar quando algo pior é proposto em substituição. Essa lei a priori da razão prática também é a verdade no conservadorismo. No âmago do socialismo de meu pai, portanto, residia um profundo instinto conservador. E, na época, vim a entender que a luta de classes que definia a sua aproximação com a política era menos importante para ele do que o amor que se ocultava por trás daquele impulso interior. Meu pai amava profundamente o seu país — não o "Reino Unido" dos documentos oficiais, mas a Inglaterra de suas caminhadas e reflexões. A exemplo dos demais de sua geração, viu a Inglaterra em perigo e foi intimado a defendê-la. Foi inspirado pelos programas sobre agricultura de A. G. Street transmitidos pela BBC Home Service, pelas telas evocatórias da paisagem inglesa do pintor Paul Nash, pelos textos de H. J. Massingham na revista The Countryman e pela poesia de John Clare. Tinha um amor profundo pela liberdade inglesa: acreditava que ser livre para dizer o que se pensa e viver como quiser é algo que nós, ingleses, defendemos ao longo dos séculos, e o que sempre nos unirá contra os tiranos. O habeas corpus estava gravado em seu coração. Ele corrobora a imagem da classe trabalhadora inglesa pintada por George Orwell no livro The Lion and the Unicorn [O leão e o unicórnio]. Quando a situação aperta, afirma Orwell, nossos trabalhadores não defendem a sua classe, mas o seu país, e associam o país com um modo de vida honrado no qual hábitos incomuns e excêntricos — tais como não matar uns aos outros — são aceitos como normais. Nesses aspectos, também pondera Orwell, os intelectuais esquerdistas sempre interpretarão mal os trabalhadores, que não querem ter nenhuma relação com a deslealdade autoproclamada que só os intelectuais podem se permitir. Mas eu também era um intelectual, ou estava rapidamente me transformando em um deles. Na escola e na universidade rebelei-me contra a autoridade. As instituições, eu acreditava, existiam para serem subvertidas, e nenhum código ou normas deveriam impedir o trabalho da imaginação. Assim como meu pai, eu também era um exemplo da lei de Conquest. O que mais prezava, e que estava determinado a transformar no meu mote, era a cultura — e incluí a Filosofia, assim como a Arte, a Literatura e a Música nessa classificação. Em relação à cultura, era de "direita": em outras palavras, reverente à ordem e à disciplina, apreciador da necessidade de juízo e desejoso de conservar a grande tradição dos mestres e trabalhar para sua perenidade. Esse conservadorismo cultural foime apresentado pelo crítico literário F. R. Leavis, pelo escritor T. S. Eliot, cujo poema "Os quatro quartetos" e seus ensaios literários adentravam em nossos corações na escola, e pela música clássica. Estava profundamente perplexo com a afirmação de Schoenberg de que as suas experimentações atonais não foram criadas para substituírem a grande tradição da música alemã, mas para expandila. A linguagem tonal havia se tornado clichê e popularesca, e era necessário, portanto, "purificar o dialeto da tribo", para usar a expressão com a qual Eliot (tomando de empréstimo de Stéphane Mallarmé) expôs o tema em "Os quatro quartetos". Essa ideia de que devemos ser modernos na defesa do passado e criativos na defesa da tradição teve um impacto profundo em mim e, no devido tempo, moldou as minhas inclinações políticas. Ao deixar Cambridge e passar um ano como lecteur em uma faculdade francesa, apaixonei-me pela França, assim como, outrora, T. S. Eliot. E isso levou a uma mudança decisiva de foco no meu pensamento, da cultura para a política. Maio de 1968 levou-me a entender o que valorizo nos costumes, nas instituições e na cultura da Europa. Por estar em Paris naquela época, li os ataques contra a civilização "burguesa" com uma sensação crescente de que, caso existisse algo minimamente decente no modo de vida tão francamente praticado na maior cidade do mundo, a palavra "burguesia" seria o nome adequado para tal. Os soixante-huitardsd eram herdeiros desse modo de vida burguês e desfrutavam da liberdade, da segurança e da vasta cultura que o Estado francês outorgava a todos os cidadãos. Tinham inúmeros motivos para apreciar o que a França havia se tornado sob a liderança do general De Gaulle, que fez com que o Partido Comunista francês se tornasse ridículo aos olhos do povo assim como também deveria ter acontecido aos olhos dos intelectuais. Para minha perplexidade, no entanto, os soixante-huitards estavam ocupados reciclando a velha promessa marxista de uma liberdade radical que virá quando a propriedade privada e o império "burguês" da lei forem abolidos. A liberdade imperfeita que a propriedade e a lei tornam possível, e da qual os soixantehuitards dependem para seu conforto e irritação, não era suficiente. Aquela liberdade concreta, mas relativa, devia ser destruída em nome de sua possibilidade ilusória, mas absoluta. As novas "teorias" que jorravam das canetas dos intelectuais parisienses na batalha contra as "estruturas" da sociedade burguesa não eram, em nenhuma hipótese, teorias, mas um monte de paradoxos esboçados para tranquilizar os estudantes revolucionários que, uma vez que a lei, a ordem, a ciência e a verdade são meras máscaras da dominação burguesa, não mais importa o que é pensado, contanto que esteja do lado dos trabalhadores em sua "luta".

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